Um dos melhores períodos para reflexão sobre a nossa vida é a Páscoa. Talvez seja o tempo onde a razão cutuca a alma. Seu simbolismo está relacionado a renovação, nascimento e ressurreição. Nesse período, há o sentido da centelha divina. A Páscoa vem do hemisfério norte em relação ao equinócio da primavera realizada pelo povo Judeu. Ou seja, a natureza e seu ciclo, onde a primavera representa renascimento, o verão, representa a juventude, o outono, a maturidade e o inverno, a velhice e morte. Por sua vez, os símbolos carregam o lado mítico e histórico para compor suas narrativas.

A Páscoa é associada a passagem, salto, pulo. Há muito tempo já existia o ritual da celebração da primavera, e para organizar uma data para Páscoa, o imperador Constantino no século IV depois de Cristo, no Concílio de Nícea, afirmou que a data seria no primeiro domingo depois da primeira lua cheia. Como é sabido, o relógio mais antigo da humanidade é a lua, com ela afloram os mistérios e os instintos. Por isso, a Páscoa remete ao domínio da vida instintiva para o domínio da vida ao Divino. No interior do Nordeste do Brasil muita gente faz sacrifício no período da quaresma. Passam a quaresma usando apenas uma cor de roupa, não cortam cabelo, não comem carne, não pintam as unhas, não comem chocolate entre outros sacrifícios. Até mesmo o sanguinário cangaceiro Lampião, contam que no bando, na sexta-feira santa, ninguém poderia fazer sexo.

Devemos lembrar do advento do êxodo para terra prometida, que corresponde na nossa vida, saltar de um plano para outro, uma nova construção de consciência. A pesquisadora Helena Blavatiskay dizia que “o ovo é o símbolo do despertar da vida.” Na idade média o ovo de galinha era pintado e presentado. O ovo também passou a ser feito de ouro ou de outro material para ser presenteado como símbolo de poder e força. Então, o ovo é o símbolo da páscoa que traz o recado do nascimento da vida.

Mas e o chocolate, como surgiu o ovo de chocolate? O doce é sempre sinônimo de contentamento. O folclorista e pesquisador Câmara Cascudo registrou no livro - Dicionário do Folclore Brasileiro que o açúcar está na boca do povo, no interior de Pernambuco era comum servir doces de frutas da época aos convidados. Por isso, o açúcar é sinônimo de energia. E os franceses, que fazem parte da velha senhora pronta para modernidade, a Europa, introduziram o chocolate ao ovo. Cá pra nós, quem não gosta de receber um ovo da páscoa de chocolate?

Outro símbolo da Páscoa é o cordeiro, o sacrifício do cordeiro traz a pureza, a luz e proteção divina, livramento. Já o símbolo do coelho, diz a lenda que quando Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus Cristo encontrou o coelho, o primeiro ser vivo que presenciou a ressurreição de Jesus Cristo. O coelho é sinônimo de fertilidade. Temos também o jejuar e comer peixe, trazido pelos apóstolos que evidencia o temor ao pecado. O bacalhau era comida de pobre, hoje é comida de rico. O círio pascal revela começo e fim de Jesus Cristo pela letra do alfabeto grego alfa e ômega. Assim como fogo sempre na vertical, a água sempre na horizontal está o símbolo da cruz na vela. Também, no sertão nordestino se come a planta bredo na semana santa. Há de se considerar, que uma das hipóteses, é que no sertão não tinha tanto peixe e o bredo substitui o peixe pelo seu gosto exótico.

Todos esses símbolos remetem a ressurreição e morte de Jesus Cristo. E, qual símbolo da semana santa ficou gravado na sua memória quando você era criança? Lembro da missa da Páscoa no interior do Ceará, na cidade de Jardim onde meu pai nasceu, havia uma fila enorme onde todos tinham que beijar a imagem de Jesus Cristo. Os Caretas mascarados circulavam durante a semana santa com chicotes ou relhos pedindo algum tipo de ajuda. Os Caretas são personagens mascarados que buscam arrecadar alimentos ou dinheiro durante o período da semana santa. O professor do Ceará, Oswald Barroso, em seu livro Máscaras, que ressalta as facetas da estética e ética das máscaras utilizada nos Reisado, Cavalo Marinho e Bumba Meu Boi, entre outros folguedos e manifestações culturais, traz uma grande contribuição para os interessados. As máscaras, “ são rituais que procuram correspondências na alma de seus portadores, nelas moram as personas, suas diferentes energias...Quem as habita, habita mistérios.” Então as máscaras revelam segredos e mistérios.

Outro personagem interessante é o morto segurando o vivo, que no interior de Limoeiro, Pernambuco, aparece na semana santa. As relações humanas assumem um sentido de paz durante alguns rituais, como por exemplo, na Páscoa. Também não se varria casa, não tirava leite da vaca, não usava maquiagem, as ruas ficavam vazias entre outros suplícios da sexta-feira santa. Assim, os rituais seriam caminhos do bem para exercícios dos dons humanos? Digamos que como diz Jacob Bronowski, “ No terreno da razão dizem, crescem a dúvida, nada é certo, salvo o irracional.” Por sua vez, a ciência não oferece uma certeza definitiva, ela é o processo de criação e conceitos que dão unidade e sentido da natureza.

Para refletir o poeta inglês William Blake diz, “A paz, a abundância e a felicidade doméstica são fonte da arte sublime, e provam aos filósofos abstratos que o prazer, e não a abstinência, é o alimento da inteligência.” Então, a arte está acima da abundância e pobreza.

Há uma compreensão genuína e não um conjunto de receitas. Tudo isso porque, Bronowski diz que “A mente que investiga e a divindade do ser humano.” É o potencial do ser humano que devemos explorar, ou seja, sua realização. O modo de investigação faz o ser humano ter prazer em realizar algo de bom. O ser humano está pautado pelas suas realizações. Para tanto, o modo que o ser humano investiga algo para o bem, alimenta sua inteligência. Por isso, necessitamos de rituais que transformem e transfigurem o ser humano. Seja pelo sacrifício, pela dor ou prazer, o que importa é reatualização das relações humanas. E mesmo no mundo das fake news, no mundo virtual será necessário a construção de caminhos do bem para o exercício dos dons dos seres humanos. Como lealdade, fraternidade, justiça, ética, entre outros que possam elevar nossas realizações. O que realmente precisamos é fazer o bem, querer o bem e principalmente, pensar o bem.

Há também a malhação do Judas e A serração da velha , tradições vinda de Portugal e Espanha. A malhação do Judas consiste na queimação de Judas Iscariotes porque traiu Jesus Cristo. Em alguns lugares do Brasil a malhação de Judas chega a ser turística, mas vem perdendo espaço por conta da violência. Muitos constroem os bonecos de pano, e remetem a algum político, ou alguma pessoa não grata. Já a Serração da velha é folguedo, uma brincadeira caricata e subversiva para quebrar o jejum e salvar as "almas santas" na quarta-feira da quaresma. Há de se considerar que o pão, o vinho e o sino não podem deixar de contemplar o período da quaresma.

Carta ao filho

Não vivas sobre a terra como um estranho
Um turista no meio da natureza.
Habita o mundo como a casa do teu pai.
Crê na semente, na terra, no mar.
Mas acima de tudo crê nas pessoas.
Ama as nuvens,
as máquinas,
os livros,
mas acima de tudo ama o homem.
Sente a tristeza do ramo que murcha,
do astro que se extingue,
do animal ferido que agoniza,
mas acima de tudo
sente a tristeza e a dor das pessoas.
Alegra-te com todos os bens da terra,
com a sombra e a luz,
com as quatro estações.
Mas acima de tudo e a mãos cheias,
alegra-te com as pessoas.

(Nazim Hikmet; 1902 - 1963)