Sim, tenho medo de cobras.

Certo dia, há já muito, estive num sítio onde as havia avonde, às cobras. Era no deserto, no Sahara.

(Entra a música de fundo, épica)

Eu e alguns amigos, tendo obtido, já não me lembro bem como, o road-book de um dos antigos ralis Paris-Dakkar, propusemo-nos fazer algumas das suas etapas. A ideia era passar uma dezena de dias a passear de Land Rover pelo deserto. E lá fomos.

Preparámo-nos com tudo o que achávamos essencial para que a viagem corresse sem grandes percalços. Levámos tendas, vários garrafões de água, ferramentas várias, material de cozinha de campanha, acendalhas, estojos de primeiros socorros… Mas correu tudo tão bem que até desiludiu um pouco. De imprevistos tivemos somente um furo e um para-brisas partido por uma pedra que saltou da pista. De resto, foi tudo demasiado perfeito. O road-book era tão bom que, ao final de cada etapa/dia de viagem, chegávamos sempre ao destino previsto. Na única vez que nos perdemos (seguimos uma pista errada e desviamo-nos cerca de 30 km para sul da rota suposta) fomos parar, não à cidade que constava no dito road-book, mas a um hotel no meio do deserto, feito de propósito para viajantes como nós. Uma agradável surpresa. Chegamos a ponderar parar no meio do deserto de propósito, só para passar uma noite longe de qualquer vestígio de civilização e dar uso ao material levado na bagagem. Mas deu-nos a preguiça e lá seguimos até hotel com piscina que nos esperava no final da etapa.

Ora, no final de uma dessas etapas estava o Fort-Boujerif (um antigo posto da Legião Estrangeira). Aí decidimos alojar-nos num complexo hoteleiro que era composto, na maior parte, por tradicionais tendas berberes. Era uma boa maneira de nos aproximarmo-nos do ideal mais radical do viajante do deserto, pelo que nem hesitamos.

No restaurante que servia aquele complexo, jantámos tanjine de camelo (sabe a galinha) e afogamos as saudades de cervejinha fresca com meia dúzia de Heinekens. O dia morria enfermo, tombando sobre as colinas ressequidas, envolto numa mortalha de névoa. No final da refeição viemos para o pátio do restaurante e assisti, à distância nunca segura de 200 metros, à exibição de um tipo esquisito que se dizia encantador de cobras e as trazia enroladas ao pescoço. Atraia os hóspedes com malabarismos vários e houve alguns que lá foram tocar nos animais, de forma perfeitamente irresponsável e, quiçá, cruel. Os bichos tinham ar de querer estar noutro sítio que não ali. Pareceu-me, pois não me aproximei o suficiente para lhes ver o semblante. O barman serviu-me mais umas Heinekens e disse que no deserto em redor não faltavam serpentes daquelas. Ele disse serpentes, não cobras. E isso inquietou-me ainda mais.

(Fim de música. Som direto: o vento a uivar fora da tenda, ruídos de corpos cansados)

Nessa noite dormiríamos, portanto, numa enorme tenda berbere, que nunca fecha por completo. O medo de receber visitas de serpentes fazia-me estremecer os gestos e os meus colegas comentavam alegremente essa hipótese, crendo-a longínqua. À cautela, coloquei ao lado do meu saco-cama uma lanterna e (à falta de melhor) uma das minhas botas, pronta a ser usada como arma de arremesso em caso de emergência. Perdi a batalha e adormeci. Várias vezes acordei, corpo tenso, mão presa na lanterna, olhos esgaçados a romper o breu em busca da causa de um pressentimento. Fui-me deixando convencer de que nada aconteceria. Até que de repente...

(Música tensa em crescendo)

Senti algo a roçar no saco-cama. Minimizei: seria impressão minha. Mas não! Não era! Estava algo a encostar-se a mim, sorrateiramente, furtivamente! Dei um salto e fiquei em pé,

(Sons estridentes, cordas esticadas de violinos)

com a lanterna enfrentei o diabo nos olhos, pronto a morrer ou a matar...

Era só uma gatinha branca, escanzelada, que tinha vindo aquecer-se junto de mim, já a tinha visto antes a rondar a cozinha do restaurante...

(Silêncio)

Que fosse pregar sustos ao raio que a partisse!! Apanhou um biqueiro que até voou por cima do jipe!...

(Metais e percussão forte e indignada)

Mentira, não lhe toquei, estou a brincar. Nenhum animal foi ferido durante a redação deste texto.

(Rimshot)