Naquela hora estimada pelas feiticeiras, quando o sol se encontrava com a terra e a noite com o dia, tomado de saudades do país natal, nosso tio valia-se de cinza peneirada para cortar as sombras.

(Bernadette Lyra)

No seu livro Memória das Ruínas de Creta, a escritora brasileira Bernadette Lyra fala duma ilha, mítica e real, metamorfoseada numa nação que acolhe estrangeiros. Fala-nos da memória, da construção labiríntica daquilo que permanece dentre o muito, da nossa vivência, que se esvai: “Estrangeiro que era, nosso tio era prisioneiro do mar.”

Convocada a escrever sobre uma parte da obra do grande artista Costa Pinheiro, que viveu como estrangeiro dentro e fora do seu país, permiti-me convidar alguns autores que me acompanham desde sempre e que falam, como Costa Pinheiro o fez, de fora para dentro, de um lugar periférico, estrangeiro. De um lugar que não é apenas um país, mas toda uma mitologia.

“Um céu renascentista...” dizia Costa Pinheiro, enquanto fumava tranquilamente a sua cigarrilha. Com gestos lentos e voz grave, mostrava-nos o céu sobre nós. E mais adiante estava o mar. A noite era suave e havia brisa. Estávamos na serra a ver a cidade que, lá em baixo, parecia mais pequena do que era. E eu, cansada, depois de um dia exaustivo, desfrutava da companhia, do céu e da vista. Há dias em que faz bem afastar-se e ver as coisas de longe – tudo se relativiza. E a beleza que nos circunda, que muitas vezes não vemos, reaparece assim, plena, num céu de fim de tarde visto do cimo da serra. Um céu renascentista em pleno século XXI.

Essa é uma das memórias mais belas que tenho da minha convivência com o artista, que ensinava, quase sem nada dizer, a ver a beleza, a perceber a grandiosidade da arte e daquilo de que somos capazes de fazer quando olhamos e, verdadeiramente, vemos.

Conheci Costa Pinheiro quando ele aceitou dar aulas na então recém-criada licenciatura em Artes Visuais da Universidade do Algarve, em 2005. Os alunos não faziam ideia de que tinham diante de si um dos maiores nomes da Arte Contemporânea, não só portuguesa, mas europeia. A sua obra era demasiado grande para um país que encolhera nos anos 60, momento em que ele despontava como artista. Talvez a consciência dessa pequenez tenha impulsionado a criação da série de figuras emblemáticas, e míticas, a que chamou Os Reis.

Como escreveu Bernardo Pinto de Almeida, o gesto criador de Costa Pinheiro foi mal recebido e mal interpretado por muitos. Confundido com um rasgo nacionalista, não perceberam que era, antes de tudo, um gesto revolucionário, em suma, um gesto artístico – pois o artista não se permite agrilhoar nem se acobarda diante daquilo que o fustiga. A nação estava ideológica e politicamente apequenada e era preciso invocar a sua verdadeira grandeza, aquela que ajudou a reconfigurar o mapa do mundo, e retratar os que impulsionaram essa aventura. Mas Costa Pinheiro fê-lo de forma irónica, criando um conjunto de figuras que se tornaram emblemáticas – figuras de um jogo de cartas que não perderam ainda o sentido e cujas regras não se alteraram, mesmo que as figuras já não sejam as mesmas e que o pendor republicano, que subjaz à noção de democracia em Portugal, as tenha relegado para um canto obscuro da História, ou dos manuais escolares.

Num livro sobre Goya, mais precisamente, sobre El Perro de Goya, o pintor Antonio Saura penetra nesse misterioso e, por vezes, esquecido, quadro do grande pintor aragonês. Na primeira aproximação à obra, Saura refere que a ilustração romântica nos dava a ver “la fiesta por dentro” talvez porque a fotografia ainda não havia chegado para registar “la fiesta por fuera.” E esse espaço entre o dentro e o fora é o que distingue, dentre outras coisas, a fotografia da pintura.

La pintura y la fotografia comienzan a serlo verdaderamente cuando una y otra se encuentran para distanciarse, no solamente en la fecha que la historia señala, sino también, en cuanto a la primera se refiere, com anterioridad a su combate liberador, y tanto más en su reciente transcurrir cada vez que el poder terrorífico de la imagen objetiva hace inútil su destino si no es a través del filtro espeso de su propia fenomenología.

Goya, o primeiro Moderno, como afirma Malraux, é um artista multifacetado, que pintou a corte, mas também deixou imagens vívidas daqueles que não participavam das benesses reais. O seu perro, de acordo com Saura, é um retrato da humanidade, cuja razão adormecida guiou em passos largos para o abismo, mas é também um autorretrato: o artista aragonês é o cão que tenta, desesperançadamente, manter-se à tona.

Podemos pensar que a obra de Costa Pinheiro e de Goya, além dos séculos que as separam, nada têm em comum. Ouso, no entanto, afirmar que Costa Pinheiro era um romântico – a contemporaneidade é permissiva o suficiente para abrigar dentro de si artistas que são grandes demais para um rótulo, que será sempre pequeno.

Os Reis de Costa Pinheiro são retratos da festa por dentro, ou seja, como figuras, mesmo que calcadas nas técnicas e ferramentas da Pop Art, negam a planura da imagem objetiva. São enigmáticas, dizem mais do que somos capazes de ver, e, sobretudo, dizem do artista, ele mesmo, um homem ousado e absolutamente contemporâneo, se se entender que o contemporâneo, como predisse Agamben, é aquele que está dentro e fora do seu próprio tempo. Que vê o antes e o depois através do tempo presente.

Se pensarmos que a figuração estava banida de parte significativa da arte Moderna, e que em Portugal, durante os anos 60, foi estigmatizada, permanecendo apenas na obra de alguns artistas (muitos dos quais estavam exilados), e que aos artistas estava reservado o lugar de combatentes do sistema ditatorial que sufocava o país, Costa Pinheiro foi extremamente ousado ao criar uma série de obras que retratavam, como escreve Bruno Marques:

(…) oito reis das duas primeiras dinastias que por ordem cronológica, se podem alinhar assim: D. Afonso I, D. Dinis I, D. Pedro I, D. Duarte I, D. João II, D. Manuel I, D. João III e D. Sebastião. Depois contam-se três rainhas, Dona Inês, Dona Leonor e Dona Filipa, às quais se junta ainda um notável cavaleiro e três príncipes, o condestável D. Nuno Álvares Pereira e três infantes da “ínclita geração”, o Navegador D. Henrique, o Santo D. Fernando e o D. Pedro das sete partidas.

A exposição foi vista pela primeira vez em Munique, onde Costa Pinheiro decidiu auto-exilar-se. Rendeu-lhe o Prémio Burda e imensa admiração pela obra de um artista único que conseguia tornar a sua obra maior que o seu tema, pois tratava de uma cronologia desconhecida da maior parte dos alemães. Tal facto, conforme Bernardo Pinto de Almeida, em vez de incentivar o artista, paralisou a sua criação. Deixou-o atónito com o sucesso alcançado, mas sentindo-se numa encruzilhada – sem querer repetir-se, não sabia muito bem que caminho trilhar a seguir.

Muitos, na verdade, foram os caminhos que ele percorreu, como diversas eram as técnicas, ferramentas e suportes que o acompanhavam. Mas ele gostava de ver-se a si mesmo como pintor. Pintor de uma obra que, em diversas ocasiões, se expandiu para fora das telas e criou corpo e ocupou espaço.

Entre 1969 e 1976, surgiu o projeto Citymobil, uma cidade utópica em que Costa Pinheiro convidava os habitantes das grandes cidades modernas a encontrar, na sua vivência opaca, o lúdico, a possibilidade de usar a imaginação para criar cidades impossíveis dentro da cidade real. Mais uma vez o jogo ocupa um lugar central na sua iconografia, das cartas de baralho dos Reis, aos móbiles de uma cidade que se queria viva e fluida.

Citymobil representa ainda, na obra do artista, o interregno entre a exposição Os Reis, de 1965, ao seu retorno à pintura, em 1976. É interessante que tenha sido essa a obra que escolheu revisitar quando, em 2009, Alexandre Barata (o artista Xana) e eu desafiamos alguns artistas a integrar o projeto de Arte Pública, Dialogue box on street Windows. Sob a orientação de Costa Pinheiro, criou-se um outdoor de grandes dimensões com uma fotografia do projeto – uma cidade imaginada dentro de uma cidade real, dentro de uma fotografia exposta noutra cidade, e noutro tempo. Uma espécie de mise en abyme que não é estranha ao trabalho de Costa Pinheiro.

Nessa exposição, no Museu Municipal de Faro, teremos a oportunidade de conhecer de perto a coleção do Galerista Mário Roque, composta não apenas dos quadros, mas também de desenhos que precederam muitas das obras. Num brilhante ensaio sobre essa coleção, Bruno Marques faz uma leitura acurada de cada obra e consegue vislumbrar, exatamente por ter a possibilidade de confrontar o percurso dos quadros nas várias versões que o precedem, nos experimentos que geraram outras obras, o processo de criação de Costa Pinheiro.

O Reino de Portugal e dos Algarves na obra de Costa Pinheiro é uma forma da região que o artista escolheu para viver, depois de voltar do seu exílio alemão, para manter viva a memória de alguém que, constantemente, destruiu barreiras e construiu um percurso único na Arte Contemporânea. Um percurso repleto de memórias e de revisitações a um país tão seu, mas também estrangeiro. Com os seus reis, rainhas, infantes e um notável cavaleiro, Costa Pinheiro põe-nos a pensar no que escreveu Bachelard:

Será necessário, consequentemente, do ponto de vista da própria vida, tentar compreender o passado pelo presente, longe de tentar incessantemente explicar o presente pelo passado.