Há muitos objectos artísticos, como pinturas ou filmes, que exibem pormenores com algum tipo de conteúdo técnico. Podem ser posições de Xadrez, expressões matemáticas, factos científicos, etc. Infelizmente, numa grande parte dessas obras, esses conteúdos são totalmente absurdos, quando não são completamente errados ou falsos. Trata-se de uma falta de cuidado imperdoável. Se o autor tem cuidado com a cor, contraste, planos, etc., por que razão não tem cuidado com a plausibilidade e com o significado desses pormenores? E o problema não é só o desleixo; ainda mais grave é perder-se uma oportunidade. Mesmo que seja técnico, o cuidado com a plausibilidade e com o significado pode tornar a obra substancialmente mais rica.

Este tipo de desleixo não acontece na obra Cálculo Mental (1895), de Nikolai Petrovich Bogdanov-Belsky (1868-1945). A análise de uma parte dessa obra constitui o principal propósito deste texto.

O pintor russo Nikolai Petrovich Bogdanov-Belsky nasceu na remota vila Shitiki em Dezembro de 1868. Com origens humildes, Nikolai Bogdanov aprendeu a ler numa escola paroquial e, desde cedo, mostrou grande capacidade para desenhar. Esse facto não escapou à atenção do botânico e matemático Sergey Alexandrovich Rachinsky (1833-1902), que o orientou, cativou e motivou na sua formação. Todo o trabalho de Nikolai Bogdanov é «muito russo», imbuído de campo, natureza e origens humildes. Muitas das suas obras mostram o contraste entre as origens humildes de crianças camponesas em idade escolar e o seu esforço em aprender e progredir. Esse contraste vincado traz inequivocamente um teor emocional muito russo às suas pinturas. Um exemplo típico é o Na porta da escola, em que uma criança espreita o interior de uma sala de aula, o maravilhoso mundo onde se aprende.

As pinturas de Nikolai Bogdanov estão repletas de actividade intelectual e artística. No Novo conto, algumas crianças lêem cumas às outras. A casa humilde com um simpático animal à porta está repleta de livros, objectos que as crianças presentes muito apreciam.

No Crianças ao piano (Figura 3, 1918), crianças e adolescentes mergulham no mundo da música.

Mesmo no Intervalo das aulas (Figura 3, 1918), as crianças aderem ao prazer de pensar, jogando uma partida de Damas.

Voltando ao tema principal deste texto, no Cálculo Mental, as crianças procuram realizar mentalmente um cálculo proposto pelo professor. Tentam fazer isso sem recurso a nenhum tipo de escrita; algumas crianças nem olham para o quadro preto, onde está escrito.

(102+112+122+132+142)÷365

O cálculo proposto parece bizarro e enfadonho. No que estarão as crianças a pensar?

Antes de continuar, o leitor deve relembrar-se que b2 significa bxb e lê-se «b ao quadrado». Por exemplo, 122 = 12x12 = 144. A razão para se ler «ao quadrado» é geométrica; por exemplo, um quadrado com 12 cm de lado tem uma área de 144 cm2.

Uma forma expedita de se realizar mentalmente um cálculo como 122 consiste no recurso a um caso notável, de que certamente o leitor se recordará. O quadrado da soma é:

(a+b)2 = a2 + 2ab + b2

e o quadrado da diferença é:

(a-b)2 = a2 - 2ab + b2

Por exemplo, o cálculo 122 pode ser transformado em (10+2)2 o que, recorrendo ao quadrado da soma, resulta em 102 + 2x10x2 + 22. Como 102 = 10x10 = 100 é muito fácil, a parte mais difícil do cálculo mental é 2x10x2 + 22 = 44. Mesmo assim, essa parte «mais difícil» é muito simples. Tem-se que 122 é igual a 144.

Uma forma de se efectuar o cálculo mental presente no quadro de Nikolai Bogdanov consiste em recorrer a casos notáveis para calcular mentalmente os cinco quadrados envolvidos, chegando a (100+121+144+169+196)÷365. Como a soma do numerador é igual a 730 e esse número é o dobro de 365, surpreendentemente, o cálculo completo resulta em 2.

Ainda assim, este procedimento envolve muito esforço mental, não sendo minimamente satisfatório. Há uma outra forma melhor de pensar, envolvendo simetria. Repare-se que, centrando o raciocínio numa simetria em torno da parcela do meio (122), tem-se:

102+112+122+132+142 = (12-2)2 + (12-1)2 + 122 + (12+1)2 (12+2)2

ou seja:

(122 - 2x12x2 + 22) + (122 - 2x12x1 + 12) + 122 + (122 + 2x12x1 + 12) + (122 + 2x12x2 + 22)

Como as parcelas do meio dos desenvolvimentos dos casos notáveis cancelam umas com as outras, não é preciso fazer muitas contas para se concluir que o numerador é igual a:

5x122 + 10

Este cálculo é razoavelmente simples de se fazer mentalmente e, como já mencionado, resulta em 730, o dobro de 365.

Todos estes procedimentos são puramente algébricos. Porém, tal como analisado pelo astrofísico e divulgador Ethan Siegel no artigo Pythagoras To A Whole New Level, há uma interessantíssima forma geométrica de pensar.

O Teorema de Pitágoras deve fazer parte do imaginário do leitor. Dado um triângulo rectângulo, «o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos». Um triângulo diz-se rectângulo se um dos seus ângulos internos for recto. Num triângulo rectângulo os lados menores chamam-se catetos e o maior chama-se hipotenusa. O Teorema de Pitágoras diz que se as medidas dos catetos de um triângulo rectângulo forem a, b, e se a medida da hipotenusa for c, então a2 + b2 = c2. O mesmo facto pode ser dito de forma geométrica, ou seja, «a área do quadrado cujo lado é a hipotenusa é igual à soma das áreas dos quadrados cujos lados são os catetos».

Indo ao encontro da obra de Nikolai Bogdanov, acrescente-se uma questão: será que existem três números inteiros positivos consecutivos a, b e c tais que a2 + b2 = c2 ? Resolvendo a equação:

(k-1)2 + k2 = (k+1)2

facilmente se conclui que k=4 e que a única possibilidade é a = 3, b = 4 e c = 5, ou seja:

32 + 42 = 52

Ethan Siegel explicou geometricamente esse facto, observando que é possível transformar dois quadrados 3x3 e 4x4 num único quadrado 5x5, decompondo o quadrado 4x4 em quatro tiras, usando em seguida essas tiras para rodear o quadrado 3x3.


Bacilles

Prosseguindo o raciocínio, Ethan Siegel perguntou-se se existiram cinco números inteiros positivos consecutivos a, b, c, d, e tais que a2 + b2 + c2 = d2 + e2 e constatou que o quadrado «do meio» cxc tinha de ser decomposto em doze tiras para rodear o quadrado bxb com quatro e o quadrado axa com oito (Figura 6). Dessa forma, conseguiu identificar um padrão envolvendo uma progressão aritmética.

três positivos consecutivos → decompor o quadrado do «meio» em 4 tiras;
cinco positivos consecutivos → decompor o quadrado do «meio» em 4+8 tiras;
sete positivos consecutivos → decompor o quadrado do «meio» em 4+8+12 tiras;
nove positivos consecutivos → decompor o quadrado do «meio» em 4+8+12+16 tiras;
etc.

Ou seja:
32 + 42 = 52
102 + 112 + 122 = 132 + 142
212 + 222 + 232 + 242 = 252 + 262 + 272
362 + 372 + 382 + 392 + 402 = 412 + 422 + 432 + 442
etc.


Bacilles

Se a criança do quadro, virada para nós com ar pensativo, fosse Ethan Siegel, saberia que 102 + 112 + 122 = 132 + 142. Sendo assim, calcularia apenas o membro da esquerda ou o membro da direita da igualdade. Poderia usar casos notáveis, chegando à conclusão de que qualquer desses membros é igual a 365, ou seja, o numerador é igual a 2x365 e o resultando pretendido igual a 2.

Neste texto, acrescentamos um raciocínio astronómico a tudo isto. Há a coincidência interessante de o denominador ser a duração de um ano não bissexto em dias. Um astrofísico como Ethan Siegel sabe certamente que a Lua dá 13 voltas à Terra no período de um ano, deixando uma 14.ª volta incompleta. Isso acontece porque o período orbital da Lua é ligeiramente superior a 27 dias (não confundir com uma lunação). É muito provável que um astrofísico saiba que 13x27 + 14 corresponde a 365 dias de um ano; 13 períodos de 27 dias mais uns dias extra devido ao facto de não haver uma sincronia perfeita. Conclui-se que:

365 = 13x27 + 14 = 13x(13 +14) + 14 = 13x13 + 13x14 + 14 = 13x13 + 14x14

Este «lado lunar» do problema é eficaz para determinar que 132 + 142 = 365.

Em resumo, se uma pessoa for conhecedora e capaz de relacionar assuntos aparentemente diferentes, então pode efectuar raciocínios sofisticados e elegantes. O cálculo da pintura de Nikolai Bogdanov pode ser pensado recorrendo a casos notáveis, simetria, padrões geométricos ou períodos astronómicos. O cálculo proposto é de uma riqueza surpreendente. É quase certo que o pintor russo não pensou em todos os caminhos aqui mencionados. Mas, também é quase certo que não escolheu ao acaso aquele cálculo. De alguma forma, teve a intuição de que o dito cálculo teria riqueza suficiente para explicar o ar pensativo de todas as crianças presentes na pintura. Nessa medida, a obra saiu a ganhar, originando textos e interpretações semelhantes a este.

Por curiosidade, observa-se que a posição da partida de Damas do Intervalo das aulas também é bastante plausível. Embora não seja possível determinar a posição exacta das peças, é possível perceber a plausibilidade da situação. Ainda que as Damas russas tenham umasregras ligeiramente diferentes das Damas jogadas em Portugal, apresenta-se um problema com as regras praticadas em Portugal (Figura 7), em que as peças estão sensivelmente nas mesmas posições que no quadro de Nikolai Bogdanov. Tente encontrar uma jogada certeira para o jogador com as peças pretas (vermelhas) e convença-se de que também a partida desenrolada no Intervalo das aulas é plausível e interessante!