«De acordo com uma interpretação semiológica da arquitectura, define-se a natureza do signo arquitectónico pela correspondência do espaço interno da arquitectura - enquanto arte do espaço - com o significado, e as formas externas com o significante; o que é o mesmo que dizer que o conteúdo corresponde ao espaço interno e o continente ao invólucro, ou espaço externo».

(José Aguiar, "Cor e cidade histórica. Estudos cromáticos e conservação do património". FAUP Publicações, 2002, p. 137).

A inscrição do Centro Histórico do Porto como Património Mundial da Humanidade em 1996, pela UNESCO, representou um momento de reconhecimento público e universal do valor patrimonial da cidade que, como bem cultural, respondia a um dos dez critérios definidos pelo organismo internacional para o efeito. Ao Centro Histórico do Porto foi reconhecido um valor universal excepcional, porque ofereceu através do seu tecido urbano e dos seus inúmeros edifícios históricos, um testemunho notável do desenvolvimento de uma cidade europeia que, ao longo do último milénio, se voltou para Ocidente, para enriquecer as suas ligações culturais e comerciais1. Essa classificação, não só honra a cidade, como a responsabiliza do ponto de vista político e técnico, ao cumprimento das normas e convenções internacionais que têm como objectivo guardar o bem cultural único, salvaguardá-lo e fazê-lo perdurdar.

No entanto, há já alguns anos que as práticas de reabilitação desse bem cultural único têm motivado alguma apreensão e polémica. Sobretudo, as que são promovidas pela administração local da cidade. A acção considerada mais danosa do Centro Histórico do Porto e que, felizmente, tem motivado acesa discussão, foi a reconstrução do quarteirão das Cardosas, na baixa da cidade, localizado em frente à Estação de S. Bento e um dos rostos da Praça da Liberdade, para instalação de uma unidade hoteleira. Como referiu Ana Paula Amendoeira, Presidente do ICOMOS Portugal no discurso de abertura do Seminário "Porto Património Mundial: boas práticas em reabilitação urbana", promovido pelo ICOMOS Portugal no Porto a 25 de Outubro de 2013, quando falamos de reabilitação urbana, estamos mesmo a falar de reabilitação urbana, isto é, de acordo com a doutrina internacional saída da Carta de Veneza, de 1964, para além de toda a doutrina produzida até à data, quer em Cartas e Convenções, quer através de documentos de trabalho, quer ainda pela ética da conservação e reabilitação das cidades e da arquitectura, que deveria prevalecer sobre os interesses privados de um determinado momento.

Serve de referência e exemplo, mesmo para aqueles que não são membros, a Declaração de Compromisso Ético do ICOMOS, revista em Novembro de 2002 que tem como objectivo a clarificação dos princípios éticos e normas da conservação, sublinhando a responsabilidade prática dos membros do ICOMOS relativamente ao património cultural e que se deve constituir como ferramenta para aperfeiçoar e clarificar as normas e os princípios éticos de conservação. No contexto das intervenções de fachadismo como a que a Sociedade Reabilitação Urbana SRU Porto Vivo promoveu no quarteirão das Cardosas, ganha relevo o disposto no artigo 2º da referida Declaração de Compromisso Ético do ICOMOS, segundo o qual a obrigação fundamental de um membro do ICOMOS é defender a conservação de monumentos, sítios e lugares, para que o seu significado cultural seja mantido como uma evidência fiável do passado, fazendo tudo o que for necessário para cuidar deles, apoiar a sua utilização e manutenção, alterando-o o menos possível. Esta obrigação requer uma abordagem integrada, holística, dinâmica e multidisciplinar, por forma a garantir a sua integridade, e apresentar e interpretar o seu significado.

Este assunto voltou a ser notícia recentemente, por causa do último relatório técnico do ICOMOS Portugal sobre a gestão da área objecto de classificação por parte da UNESCO. Como noticiou o jornal Público na sua edição de 26 de Maio passado, a Comissão Portuguesa do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios descreve uma série de maus exemplos de reabilitação urbana e fachadismo, entre os quais se podem contar o caso das Cardosas, a intervenção no quarteirão da Casa Forte, na Praça Carlos Alberto, o edifício d'A Brasileira e a antiga Pensão Monumental. O ICOMOS critica o esvaziamento populacional do centro histórico e a transformação de muitas habitações permanentes em alojamento turístico. Como já havia sublinhado anteriormente

«um quarteirão renovado por trás da sua diversidade de fachadas (o que se tem vindo a designar por 'fachadismo'), fazendo tábua rasa do parcelário de forma a funcionar como um edifício único, um condomínio, um centro comercial, etc. é uma ilha de autismo, um tecido cancerígeno no meio da cidade. Algo que, num processo paradoxalmente autofágico, perde a capacidade de relação com a envolvente. Virar as intervenções para si mesmas é uma perda de oportunidade crucial para a dinamização do tecido urbano, das ruas e praças do seu contexto»2.

Por outro lado, foi igualmente notícia dos últimos dias a decisão de encerrar o "Quiosque do Piorio", estrutura tradicional e bastante antiga, localizada perto do Jardim de S. Lázaro e da Biblioteca Municipal do Porto, que era (é?) um dos animadores da contestação à gentrificação do Porto, porque, aparentemente, não se enquadra no conceito que a Câmara Municipal do Porto tem para aquele espaço. Ora, cruzando os vários exemplos que têm vindo a público ultimamente no Porto, parece haver verdadeiras razões para preocupação porque estamos a assistir à criação de um museu de dissecações a céu aberto, em que o significante não tem qualquer relação com o conjunto de significados que lhe estão associados, e projectamos uma memória fantasiosa do passado, à boa maneira da Disney.

Notas

1 No caso do Centro Histórico do Porto, a sua inscrição foi feita na Vigésima Sessão, entre os dias 2 e 7 de Dezembro de 1996, em Merida, México, com base no Critério IV.

2 Declaração do Porto, ICOMOS-Portugal , 2013.