Ao reler as publicações que, desde 1992 e de dois em dois anos, a Secil editou com o projecto vencedor do Prémio de Arquitectura, a declaração de Ávaro Siza, sob pretexto da eleição do seu projecto e obra da Faculdade de Ciências da Informação, em Santiago de Compostela, para o prémio de 2000, saltou à vista. Segundo o arquitecto, “já era livre, pois possuí regras...”, ou, como refere Manuel Correia Fernandes, que presidiu ao júri do prémio desse ano, nessa mesma publicação, a força da naturalidade com que a arquitectura de Álvaro Siza se faz, sobretudo, quando absolutamente liberta porque guiada por um sistema de regras que, finalmente, faz da sua obra uma oferta à própria arquitectura 1.

Essa declaração de princípio de Álvaro Siza merece reflexão profunda. Particularmente, porque introduz, desde logo, a pergunta: quais são as regras da Arquitectura? Estará Álvaro Siza a falar de regras suas? Ou de um conjunto de princípios que, como na antiguidade clássica, serviam de fio condutor à prática do projecto arquitectónico e da construção? Ou a existência de uma certa continuidade ao longo do tempo, comum, não a toda, mas à boa arquitectura, constante e independente do código formal e dos motivos decorativos 2.

Socorremo-nos das palavras de José Carlos Loureiro, um dos arquitectos de maior relevo no panorama nacional dos últimos cem anos. Para o arquitecto, deveremos considerar a necessidade de atender às condicionantes que mais de perto influenciam a arquitectura - o clima, a paisagem, os materiais locais, e o homem, como entidade física e psíquica, variável segundo as diferenças étnicas3. Mas José Carlos Loureiro vai mais longe, ao afirmar, como Alvar Aalto, que o homem deve estar sempre no centro do problema, deveremos restituir ao homem arrasado, esmagado pelas cidades(...), a sua condição primária de ente saído de seio da natureza.

Este aspecto, fulcral para a arquitectura, posiciona no centro do problema, ou das considerações a ter na actividade projectual, o homem, o ser humano para quem se destina a obra, e a vida que vai ter lugar no objecto do nosso estudo/actividade profissional. Essa é, verdadeiramente, uma das constantes da boa arquitectura. Porque dependente das condições do meio, dela própria vai depender a qualidade de vida dos seus utilizadores. Como referiu Fernando Távora, da boa ou má qualidade da organização do espaço depende o bem ou o mal estar dos homens. Porque cria condição a partir dessa sua existência.

Ter o homem no centro do problema implica, igualmente e sobretudo, fazer da arquitectura uma prática que envolve, de facto, o homem que a vai ocupar, que dela vai usufruir, o maior interessado no resultado final. Aqui reside, a nosso ver, grande parte da dificuldade de compreensão disciplinar por parte da população em geral. Porque na maior parte das vezes, os projectos são opacos, pouco claros e incompreensíveis. Consequentemente, as pessoas afastam-se, porque não entendem nem a linguagem, nem o resultado proposto. E observam, de fora, as realizações de alguns nomes ditos “incontornáveis”, às quais associam todos os méritos e alcance da disciplina, como coisa que vem de fora, e que apenas existe para os outros, sejam ricos ou estrangeiros.

Ora, esse preconceito, a que os arquitectos não são alheios, subverte profundamente aquilo que está na base da arquitectura e a ideia de José Carlos Loureiro, referida no início deste texto.

Porque a arquitectura não é um acto isolado, um recipiente estanque nem uma ciência oculta. Deve ser praticada de forma partilhada e reflectir o conjunto de relações entre a obra e a vida, traduzindo exactamente, segundo uma relação perfeita, as suas condições envolventes4. Talvez seja esse o "segredo" de Álvaro Siza, a sua capacidade de, em cada gesto demonstrar uma modernidade absoluta, na acepção referida por Fernando Távora na sua Lição das Constantes e, simultaneamente, valer-se do conhecimento do passado na medida das necessidades da sua arquitectura presente.

Notas

1 Manuel Correia Fernandes, secil 2000 - o caminho para santiago, in Prémio Secil de Arquitectura 2000 (2000), p. 4.

2 A este propósito, ver o livro O mundo ordenado e acessível das formas da arquitectura, de José Miguel Rodrigues, com edição da Fundação Instituto José Marques da Silva e Edições Afrontamento, em 2013.

3 José Carlos Loureiro, O azulejo, possibilidades da sua reintegração na arquitectura portuguesa (1962), p. 21.

4 Fernando Távora, «A Lição das Constantes», in Teoria Geral da Organização do Espaço (1993).