Tendo por princípio a relação que se estabelece entre um determinado espaço de habitar e a vida que nele se desenrola, foi realizado um documentário sobre a casa que alguns arquitectos portugueses habitam, feita por si próprios ou por colegas. A ideia subjacente a esta iniciativa é olhar para o interior das casas dos arquitectos, saber como e porque escolhem determinados espaços para os seus momentos mais solitários ou mais intensos, saber qual é a distância que se coloca entre as casas que projectam para os outros e a própria casa1.

O documentário, dividido em treze episódios, um por cada arquitecto escolhido, teve emissão na TVI2, posterior publicação em livro, com edição da Cardume Editores, e incluí personalidades incontornáveis do mundo da Arquitectura como Álvaro Siza Vieira, Alexandre Alves Costa, Manuel Aires Mateus, Eduardo Souto de Moura, Sérgio Fernandez, Gonçalo Byrne e José Carlos Loureiro, entre outros. Das treze formas distintas de ver a Arquitectura, de desenhar e habitar o espaço, destaca-se a abordagem de José Carlos Loureiro, verdadeiramente inspiradora e principal objecto deste artigo.

Personagem marcante da Arquitectura portuguesa, sobretudo na segunda metade do século XX, cuja obra tem vindo a influenciar sucessivas gerações de arquitectos, não só da Escola do Porto, José Carlos Loureiro fala do ofício e da arte de construir com a serenidade e a sabedoria de quem contribuiu de forma decisiva para a construção da cidade do Porto e a sua abertura à modernidade. Contemporâneo de Agostinho Ricca, Arménio Losa, Cassiano Barbosa, Fernando Távora, João Andresen, Mário Bonito, Octávio Lixa Filgueiras e Viana de Lima, a ele se devem alguns dos exemplos mais relevantes da arquitectura do Porto, local onde a cúpula do ‘seu’ pavilhão do Palácio de Cristal é, ainda hoje, mais de sessenta anos volvidos desde a sua construção, uma afirmação fortíssima no coração dos jardins da cidade.

De entre as inúmeras obras e projectos da sua autoria, o documentário concentra-se na habitação do arquitecto, projecto de uma vida, que começou por construir nas margens do rio Douro em Agosto de 1950, altura em que se casou, foi ampliando ao longo dos anos consoante as necessidades e disponibilidades e onde ainda hoje habita. Trata-se da segunda obra construída de José Carlos Loureiro e que constituiu simultaneamente a sua prova final do curso de Arquitectura. De uma planta inicial aberta sobre o rio e dividida de acordo com as diferentes funcionalidades interiores, a organização do espaço foi evoluindo, primeiro para norte, com aumento do número de quartos e redefinição das zonas de serviço e, posteriormente, para poente, com a criação da “sala nova”, mais fechada, pela necessidade de paredes onde o arquitecto pudesse colocar os quadros que ia adquirindo ou recebendo.

Em entrevista concedida a Alexandre Alves Costa em Novembro de 2015, no âmbito da homenagem promovida pela Fundação Marques da Silva e pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, José Carlos Loureiro declara a casa como afirmação de um desejo de modernidade, contra as imposições de uma linguagem oficial, do chamado ‘português suave’ na arquitectura nacional. Curiosamente, o elemento central na planta de 1949 e também na de 1969, é o fogo. Os compartimentos vão-se articulando em volta das duas lareiras existentes, que estruturam toda a distribuição e organização interior, característica essa que, a par do sábio uso dos materiais, evoca a essencialidade da arquitectura vernácula do norte de Portugal. A lareira será, de resto e uma vez mais, o tema central de um outro projecto que virá a desenvolver alguns anos mais tarde para a habitação/atelier do seu amigo, o pintor Júlio Resende, num terreno próximo da sua habitação própria. Relativamente a essa habitação para o amigo Júlio Resende, José Carlos Loureiro manifesta uma humildade e disponibilidade para a crítica que só enobrece a sua arquitectura. Ele, que acredita que a disciplina da Arquitectura e o trabalho do arquitecto se faz para as pessoas e não contra as pessoas. Será a primeira incumbência do arquitecto servir as pessoas, o seu conforto físico e emocional. Se os espaços forem belos, as pessoas vivem melhor neles 3.

Esta preocupação em estabelecer relações entre o belo e as pessoas, através da Arquitectura é, porventura, a sua maior lição enquanto Mestre e Arquitecto. Na primeira visita a um outro edifício da sua autoria, a Pousada de S. Bartolomeu, em Bragança, construída originalmente em 1954, houve alguns aspectos que sobressaíram imediatamente de forma evidente e emocionante. Em primeiro lugar, o desenho do percurso da entrada, pela plataforma de nível que nos recebe e ‘esconde’ a cidade, só a revelando mais tarde, nos quartos e nas salas; depois, o desenho da sala de estar, o conforto dos seus materiais numa noite de inverno ou numa tarde de primavera; a escala e proporção dos dois patamares e a forma como a lareira, uma vez mais, nos envolve e contribuiu activamente para a definição de todo o espaço; por fim, a beleza do desenho do mobiliário, coisa aparentemente banal na época, mas cuja integração na arquitectura parece perdida nos dias de hoje.

A dimensão do contributo de José Carlos Loureiro para a Arquitectura reflecte-se na coerência e consistência da sua obra construída, não sendo, portanto, de estranhar que muitos dos seus edifícios sejam objecto de classificação, sinal inequívoco que o tempo, esse grande escultor, lhe tem dado razão. Mas reflecte-se igualmente no testemunho que vários arquitectos seus discípulos e amigos dão da sua obra e personalidade, como Álvaro Siza, Manuel Correia Fernandes ou Nuno Brandão Costa. As suas obras não são indiferentes às pessoas e aos lugares. São afirmativas na paisagem e nos contextos espacio-temporais em que nascem e estão. Reconhecem-se. Identificam um autor. Envolvem quem as usa. E surpreendem com frequência!4.

Notas

1 Maria Milano e Roberto Cremascoli, José Carlos Loureiro, A Casa de Quem Faz Casas - A nossa Casa, 2016, p. 5.
2 Os vários episódios podem ser vistos aqui.
3 José Carlos Loureiro in, José Carlos Loureiro, A Casa de Quem Faz Casas - A nossa Casa, 2016, p. 25.
4 Manuel Correia Fernandes in, J. Carlos Loureiro, Arquitecto, 2012, p. 10.