A existência de três concepções do espaço em Arquitectura, proposta por Sigfried Giedion1, cujo começo está intimamente ligado ao desenvolvimento de um sentido de ordem espacial, ao sentido da verticalidade e do plano horizontal, coloca algumas questões sobre as quais importa reflectir. Sobretudo se nos debruçarmos sobre o significado de cada uma dessas concepções para a Arquitectura que temos hoje no território e que se apresenta como um somatório de camadas estratigráficas e temporais. Ou, melhor ainda, se procurarmos analisar essa Arquitectura que herdámos com os mesmos olhos de quem a produziu. Por mais bizarra que nos pareça na actualidade.

A primeira concepção espacial em Arquitectura definia-se pela existência e disposição de volumes edificados no espaço, correspondendo às primeiras grandes civilizações, Egipto, Mesopotâmia e Grécia, sendo esta última entendida já como um período de transição e etapa final desta primeira concepção, sobretudo por expressar, pela primeira vez, a evolução democrática na Europa. Roma inaugura a segunda concepção espacial, da Arquitectura como espaço interior, naquilo que Giedion designa por concepção ocidental do espaço e se prolongou pela Arquitectura da Idade Média, do Renascimento e do Barroco, até ao aparecimento de métodos revolucionários de construção em ferro no Séc. XIX.

Essa revolução construtiva inaugurou uma nova mensagem na Arquitectura, para o devir da Arquitectura, a mensagem de transparência e luz. Estava criada a terceira concepção de espaço, da Arquitectura como volume e espaço interior e seria a nova época, a da máquina e dos novos materiais, a única capaz de fazer a síntese necessária ao aparecimento e crescimento dessa Arquitectura. Ao fazê-lo, deixou transparecer um duplo e simultâneo desejo de liberdade e ordem na Arquitectura.

Sigfried Giedion sublinha alguns aspectos da arquitectura romana que nos ajudam não só a compreendê-la melhor mas, sobretudo, a perceber a sua força, permanência no tempo longo e o espanto que ainda hoje provoca em nós. Por um lado, o facto da organização complexa da indústria de construção romana ter-se antecipado a progressos que só viriam a surgir muitos séculos depois, com o aparecimento de ferro na construção. Por outro, o extraordinário desenvolvimento do espaço interior dos edifícios, que foi ao ponto de desenhar o espaço exterior de maior importância para a vida das cidades romanas, o fórum, como se de um espaço interior se tratasse.

A demonstração notável de pragmatismo e a capacidade para resolver problemas permitiu aos romanos tornarem-se governantes e organizadores do mundo, então conhecido. A solidez das suas pontes, algumas em uso ainda hoje, e a vasta rede de estradas que ligavam Roma a todas as cidades do império, não tem paralelo na História. A ideia de estruturar e organizar um continente a partir de uma rede de estradas será, porventura, a mais sublime e megalómana das obras até agora feitas. Sublime em Arquitectura, sobretudo no que à dimensão e escala diz respeito, na acepção proposta por Paulo Varela Gomes2. Algo que é belo, mas assustador, invulgar e desmesuradamente monumental, ao ponto de “esmagar” o ser humano e o reduzir à sua pequenez, intencionalmente. Como demonstração de que a sensibilidade e razão humana nunca estão à altura do mundo. Na presença do sublime, somos colocados numa posição completamente instável, porque a razão é desafiada.

Paulo Varela Gomes dá como exemplo algumas estações de caminhos de ferro norte americanas e italianas, do final do Séc. XIX e início do Séc. XX; ilustrações de Étienne Louis Boullée do Séc. XVIII; o edifício do Palácio da Justiça de Bruxelas; a Igreja do Convento da Flor da Rosa, no Crato; a instalação na Tate Modern, em Londres, “The Weather Project”, de Olafur Eliasson, de 2003; as Termas de Caracalla e a Basílica de Maxêncio e Constantino, ambas em Roma; e a proposta não encomendada, de Le Corbusier para o Rio de Janeiro, em 1929; entre outros.

Olhando para essa proposta de Le Corbusier, de uma cidade elevada que se estende e estrutura ao longo de um edifício contínuo, curvilíneo e prolongado que vai serpenteando e contornando a topografia existente, evidencia não apenas o radicalismo e ruptura para com os precedentes históricos, que são óbvios, mas remete para uma ideia de transcender tudo o que se conhece, a natureza, as dimensões, a escala, de fazer uma coisa que ninguém espera. E esse pensamento de estruturar e organizar o espaço a partir de um eixo de circulação remete, na nossa opinião, para Roma. Para essa ideia sublime de algo que abrange todo o território que se conhece, até perder de vista. E para a ideia de superação da técnica, comum a esses dois períodos da História da Arquitectura.

No entanto, as semelhanças ou coincidências não se reduzem a uma intenção comum. Vão mais longe, ao facto de ambas representarem uma síntese de espaço interior e espaço exterior. Da terceira concepção do espaço em Arquitectura proposta por Giedion, que referimos anteriormente. A estrada romana, que se sobrepõe em muitos casos, a caminhos pré-existentes, aproveitando essa noção pré-arquitectónica de um percurso que é feito desde tempos imemoriais, mas que se desenha e organiza com Roma, até perder de vista, e se assume como escultura nuns sítios, se dilui na paisagem noutros, e se transforma em espaço habitável nas cidades e vilas. A estrada como Arquitectura contínua, volume e espaço habitado.

Notas

1Sigfried Giedion, Architecture and the Phenomena of Transition. The three Space Conceptions in Architecture, Cambridge, 1971.

2A última aula do Professor Doutor Paulo Varela Gomes está disponível online.