"A modernidade não é feita de sonhos mas de não os poder ter"
Adolfo Casais Monteiro

Não seria exagerado afirmar que o século XX foi, definitivamente, um novo século. Assentará esta novidade, entre outras, numa profunda modificação da visão do mundo cristalizada a partir de constantes relativizações na relação entre o homem e a sua apreensão da realidade, não sendo menos importante, para esta reapreciação, as inúmeras manifestações artísticas. Mesmo que as suas raízes estivessem fincadas no séc. XIX, o seu limiar arrasta consigo um outro homem, construído de fragmentos e espelhos, o homem das passagens de Paris, como descreveu Baudelaire, o homem das imagens, fotográficas e cinematográficas, que vieram para alterar definitivamente a nossa perceção do mundo.

É preciso, antes de mais nada, que haja consciência de que a arte absorve o sentido do tempo e acaba por realizá-lo, seja em palavras seja em imagens. Apesar de apontar para o futuro, os artistas refletem as descobertas e visões de seu próprio tempo – A dança, de Matisse, por exemplo, gira em torno de um espaço surgido no Renascimento, diferente daquele imaginado pela Idade Média e representado pelos artistas daquela época. A perspetiva renascentista vai atravessar os séculos e ainda está presente na nossa era e é, justamente neste momento, que principia a sua destruição. A imagem do universo de Matisse atualiza a Renascença mas propõe também a desestabilização de um olhar. Conforme Francastel:

O espaço aparece dotado de novas qualidades: extensão ponderal, plasticidade, indeterminação dos limites. Desta vez, estamos nitidamente fora das hipóteses fundamentais do século passado. Mais uma vez, constatamos que a arte moderna retorna a fontes permanentes da visão para elaborar novos sistemas ilusionistas.

Para falarmos da arte do início do século XX, é necessário conhecer o contexto do seu nascimento. A nova arte é, de facto, uma necessidade de um novo homem e de sua própria consciência espácio-temporal. Há um deslocamento percetivo que o obrigará a ver-se no objeto que se torna o ponto de partida das representações, por exemplo, dos cubistas e futuristas. Estamos em 1909, quando Matisse pinta A dança, dois anos depois de Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, obra que, segundo Lièvre-Crosson, já deitara por terra: “ (...) quatre siècles de tradition picturale”. Matisse pertenceu aos primeiros movimentos de vanguarda (fauvismo), ligado ainda a uma certa influência pós-impressionista (Gauguin), tendo sido o primeiro a recorrer à palavra “cubos” ao referir-se a um quadro de Braque. Poderia ter adotado como referência o quadro de Picasso, até por razões cronológicas, mas o que interessa neste instante é mostrar que a proposta de A dança – flutuar além do universo, ultrapassando as barreiras físicas, plásticas e até gravitacionais, foi, de alguma forma, a proposta de todas as vanguardas artísticas.

O termo avant-garde, de origem militar, surge na França. Apesar de estar ligado mais diretamente aos movimentos literários, podemos ampliá-lo para as artes de um modo geral, visto que a maior parte destes movimentos – mais uma característica das vanguardas – estava envolvida em várias instâncias, passando pelas letras, pelas imagens e pela música. Para nós o que interessa deste conceito é determinar um certo funcionamento geral das artes do princípio do século XX, que, mesmo com diferenças, partiram de alguns pontos em comum, tais como: consciência de grupo, carácter revolucionário e, de um modo geral, vida curta, já que buscando a superação, se esgotavam na própria busca.

O que as vanguardas pretendiam era fazer explodir as formas de expressão até então conhecidas e expressar a angústia de um tempo que se iniciava sob os escombros de uma Guerra Mundial, da qual eles não queriam participar. Foram desertores de uma batalha que não reconheciam como deles. A sua luta era no campo das ideias, inclusive para as combater devido ao seu efeito gerador do caos da guerra.

O fim do século XIX deixou no ar questões de fé, razão e lógica. Deixou também o desejo de reordenar o olhar sobre as coisas e sobre a própria humanidade. Das perguntas lançadas no fim do século passado, de uma guerra que os obrigava a todos a reagir de alguma maneira, surgem os movimentos de vanguarda. Se o termo avant-garde tem origens militares, a existência dos movimentos está exatamente compreendida no período anterior e imediatamente posterior às duas Grandes Guerras.

Vários foram os movimentos de vanguarda. Alguns deles eram profundamente antitéticos, mas carregando consigo a noção de um conflito que pertencia a todos: qual seria a nova conceção do Homem e da História? Neste período, surge o fascínio pela máquina – que se tornou definitivamente uma intermediária entre o homem e o mundo.

O papel fundamental das vanguardas será então construir um olhar, transformar a perceção, lançar a todos num espaço novo que exigia uma mudança radical de ponto de vista. Segundo Ortega y Gasset: “Para ver un objeto tenemos que acomodar de una cierta manera nuestro aparato ocular. Si nuestra acomodación visual es inadecuada no veremos el objeto o lo veremos mal”. Para o filósofo espanhol, o que as vanguardas fizeram, dentre outras coisas, foi obrigar-nos a mudar a direção do nosso olhar. O deslocamento do olhar seria pois um regresso à própria arte, fugindo da necessidade intrínseca, provocada por certas correntes artísticas do séc. XIX, de reproduzir o mundo. O que interessava às vanguardas, não eram as histórias e possíveis identificações que elas pudessem promover, mas, pelo contrário, o efeito de estranhamento, procurando dirigir o olhar para o objeto, para sua construção, para sua possibilidade de instaurar um desvio no texto da vida. Mais que a aceitação, buscavam a provocação e mesmo o escândalo.

Falar das vanguardas históricas, é, também, falar da crise da cultura provocada por questões que vão desde a religião a ciência, passando, é claro, pelas artes. O processo de dessacralização do mundo, da quebra dos mitos e da liquidação do Estado divino, suscita uma reação por parte dos mesmos que ajudaram a promover esta derrocada: “Com os destroços do mito, que são os destroços de Deus, a burguesia esforça-se por fundar uma nova unidade que transcenda, resolvendo-as pelo poder da ilusão, as separações e as contradições que os homens privados da religião (no sentido do «que liga colectivamente a Deus») ressentem em si e entre si”, como afirmou Jules François Dupuis. Era preciso pois subsumir uma outra unidade que substituísse magicamente a unidade perdida. A cultura adquire aqui um papel fundamental, como sustentáculo de uma ideologia do espetacular, capaz de reproduzir o sentido do uno.

O paradoxo do fim do século XIX, a tensão entre o desprezo solene dos valores burgueses e o usufruto de suas benesses, entre a recusa do mercado cultural e a formação do mesmo que vai, a partir de agora, gerir o mundo das artes, atravessa as fronteiras do século XX, obrigando os artistas a uma tomada de posição: ou aceitam fabricar produtos culturais como mercadorias, ou rompem com o ciclo que os leva irremediavelmente a coadunar-se com valores que eles desejam combater.

As vanguardas herdam elementos do período anterior, reassumindo a crise da cultura ocidental ensaiada em vários momentos do século XIX, e da crise do próprio homem diante de guerras cada vez mais devastadoras, capazes de provocar tanto a repulsa como o fascínio, pela sua grandiosidade, pelo uso das máquinas e pela transformação dos homens sujeitos ao seu poder de criar a destruição. “Fiat ars – pereat mundus, diz o fascismo. E, como Marinetti reconhece, ele espera que a guerra forneça a satisfação artística da perceção dos sentidos alterados pela técnica”. Para Walter Benjamin, os grandes períodos históricos provocam uma reorganização no nosso modo de perceber o mundo. A era da reprodutibilidade técnica traz-nos uma outra relação com a arte, que não é já a da contemplação mas a do choque. As vanguardas buscam não a aceitação ou a compreensão, pois sabem que concorrem com algo – a guerra – mais grandioso à sua volta. Precisam de retirar a arte de um quotidiano para torná-la, de facto, participante do seu próprio tempo, simultaneamente traduzindo-o e antecipando o seu porvir.

A arte distancia-se da natureza e cria um novo mundo. Alterando a estrutura espacial utilizada no Renascimento, busca formas novas de traduzir um outro espaço. A perspetiva renascentista e seu desejo de reproduzir o mundo o mais fielmente possível é, então, relegada para dentro das objetivas das câmaras fotográficas e cinematográficas. Libertas de uma certa função reprodutora e identificatória, as artes plásticas aproximam-se da poesia, da possibilidade de criar imagens que esta possui: “A arte pós-impressionista não pode mais ser considerada, em qualquer sentido, uma reprodução da natureza; sua relação com a natureza é de violação. Podemos falar, no máximo, de uma espécie de naturalismo mágico, da produção de objetos que existem a par da realidade mas não desejam tomar o lugar desta”, diz-nos Hauser.

Ao renunciar à reprodução do mundo, as vanguardas renunciam também aos conceitos que guiavam, até então, a criação do objeto artístico. A noção de belo, presente nas obras de arte e nos estudos que hão-de acompanhá-las ao longo dos séculos, torna-se inoperante. Segundo Hauser, a arte moderna é “fundamentalmente uma arte «feia»” que não busca o deleite, mas privilegia o intelecto, renunciando ao hedonismo e aos excessos sentimentais cometidos por alguns dos seus artífices do passado.

Se os cubistas inauguram um novo tempo, deixando para trás quatre siècles de tradition picturale, serão os dadaístas que levarão mais a fundo a destruição dos meios convencionais de expressão, rompendo com a tradição artística oitocentista, sem entretanto a renegar por completo, pois herdará características importantes de algumas de suas manifestações. O dadaísmo surge em plena guerra e acaba por incorporar o sentimento geral de derrota que ela trouxe aos meios intelectuais. Não era um movimento que possuísse um longo alcance. Na sua génese, já estava contida a sua destruição, o seu sentido negativo do mundo, da criação e da própria arte. Fazendo explodir toda e qualquer forma de representação, não teria outra alternativa senão o suicídio. De um modo ou de outro, o dadaísmo estava condenado à morte.

O dadaísmo, tal como o surrealismo, foram movimentos essencialmente românticos. A sua luta pela expressão direta e espontânea do artista não está distante daquilo que o romantismo preconizou. O passado, que eles desejavam superar, não foi completamente sufocado, foi denegado e, assim, permaneceu como uma marca em toda a arte que se fez naqueles primeiros anos. Não é só a presença sempiterna do passado, mas muitos outros os fatores que ligam entre si os movimentos artísticos do período. Por maiores que fossem as diferenças, havia um sentimento comum que os guiava a todos e que os fazia estar em constante ebulição – metamorfoses artísticas visíveis em suas obras, transformações constantes e inter-relações inevitáveis.

As chamadas « vanguardas irracionalistas » (surrealismo e o dadaísmo) propõem-nos um mergulho no irracional, trazendo de volta conceitos que já estavam presentes desde, pelo menos, o século XVIII. Como movimentos de vanguarda, deram vazão ao sentimento comum da necessidade de revolver as entranhas da velha arte e de criar algo que refletisse o seu próprio tempo. Se o cubismo promoveu uma derrocada da representação realista do mundo, o dadaísmo e o surrealismo, dentre outros, desestruturaram a lógica racionalista e deixaram vir à tona o horror antevisto por Goya, pois de facto, o adormecer da razão gera monstros.

René Huyghe analisa o fim do século XIX e o caminho inexorável que os artistas vão trilhar no século XX. Um caminho que reflete a incomunicabilidade e o declínio, não só da civilização ocidental, mas do próprio conceito de civilização. Parte-se para a não figuratividade, deixa-se de respeitar os “sobejos do mundo visível”, e, mesmo a arquitetura sóbria e geométrica das telas de Giorgio De Chirico, não representa um retorno ao tipo de figuração renascentista. Trata-se de um jogo feito com formas que já não significam nada e que estão ali dispostas precisamente para isto: são estruturas obsessivas que excluem qualquer possibilidade de vida, são manequins e autómatos que atualizam o pesadelo de Goya. Os monstros gerados pela arte irão, cada vez mais, levar-nos a uma descida às trevas que pairam sobre a civilização europeia.

Desnaturalizar o mundo, torná-lo estranho, para que, contraditoriamente, ele possa ser novamente conhecido. As vanguardas propõem uma nova estética – capaz de extrair o belo do absurdo e de instaurar o desvio para que daí surja, de facto, o real. André Breton começa o I Manifesto do surrealismo dizendo: “Tant va la croyance à la vie, à ce que la vie a du plus précaire, la vie réelle s’entend, qu’a la fin cette croyance se perd”. Talvez a grande tarefa proposta pela arte do início do século XX tenha sido, exatamente, a de reinstaurar a crença na vida.

Referências bibliográficas

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