Em pesquisa qualitativa, cujo tema foi o estudo das identidades masculina e feminina sob o referencial da Psicologia Analítica, investigou-se o psiquismo de homens e mulheres a fim de obter uma visão mais aprofundada do que se tem como essencial (arquetípico) para o masculino e o feminino no estrato cultural de Campinas/Brasil. Os resultados obtidos demonstraram que, contrariando todos os pressupostos da cultura patriarcal, que associam o feminino às perversões do mundo profano, viu-se que o território do feminino para o sujeito esteve prenhe de elementos do sagrado que lhe deram sábias indicações para a resolução de seu conflito, levando-o ao encontro do ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido.

A partir disso, Heródoto (nome fictício), o caso que melhor ilustra a questão do conflito entre o sagrado e o profano nas relações entre os sexos, pôde então realizar a coniunctio oppositorum quando lhe foi proposta a situação de encontro entre o feminino e o masculino. Viu-se que a ação da coniunctio foi altamente terapêutica, pois ajudou-o a trazer para a consciência e legitimar aquilo que foi negado ao feminino, ou seja, o seu papel na busca da transcendência, a assunção de sua importância para a complementaridade do masculino, o reconhecimento de seu lugar de direito na cultura patriarcal, e a descoberta de que masculino e feminino têm a mesma essência. Desta forma, Heródoto, no plano simbólico e ao nível da fantasia resolveu o problema de sua solidão.

Encontro das figuras masculina e feminina

Heródoto afirma que no encontro entre o Ser masculino e o Ser feminino - o ipê por um lado e as árvores por outro - cada um tem uma sensação diferente. Originalmente o ipê estava só numa calçada defronte a uma casa (isto é, num ambiente urbano) e ao mesmo tempo havia o sol forte. Agora, nesta nova situação, inicialmente ele se sente “num mundo estranho”, pois encontra-se no bosque junto às árvores, onde predomina a penumbra, a umidade e um silêncio ritualístico. Neste novo recinto a luz não o atinge, sendo que esta era muito mais intensa quando ele estava só na calçada (talvez sua estranheza se deva exatamente à penumbra do ambiente em flagrante contraste com a luz fulgurante do sol). O sujeito explica que as árvores por serem muito altas, ofuscam a luz solar.

Harding (1980) relata que na filosofia chinesa o princípio feminino, “Yin”, está em direção oposta ao princípio masculino, “Yang”. “Yang” é energia criativa, é o luminoso, quente e poderoso (o pé de ipê de Heródoto com todo o seu esplendor em meio à irradiante luz do sol). “Yin” é o escuro, úmido, ilusório, vago e sombrio (a penumbra do bosque em que estão as árvores, e a umidade do muro que o circunda). O “Yin” tem poder equivalente ao “Yang”, pois ele traz todas suas efervescências em manifestação.

Refletindo, Heródoto acrescenta que esta relação de aparente oposição na verdade veio enriquecer e renovar a ambos, pois, num saudável mecanismo de troca e parceria (que lembra a simbiose na natureza), cada um ganhou alguma coisa. Assim, o ipê gosta do cheiro característico daquele novo ambiente, inexistente no local onde estava anteriormente. No bosque ele ganhou companhia, a companhia das árvores, dos seres vivos que pertencem ao seu mundo, isto é, o reino vegetal, a própria natureza, e agora não está mais sozinho.

Por sua vez, aquelas árvores altas do bosque não possuíam flores, apenas folhas. Então o ipê veio enriquecer, veio dar vida às árvores com suas flores. “O ipê deu as flores pra elas!”, diz o sujeito. Desta forma eles se complementaram e desenvolveram uma saudável ‘simbiose’: o ipê estava sozinho, isolado, e neste novo quadro ganhou uma família: as árvores e as flores que circundavam a fonte. Enquanto isso, as árvores ganharam flores.

O sujeito, por sua vez, está de pé, próximo à fonte, situada logo abaixo. Deste ponto dá para observar o topo do ipê, o qual fica um pouco mais elevado que as outras árvores (o ipê não se mistura às árvores, mantendo-se numa posição estratégica e privilegiada). Na fonte, Heródoto, atingido pelos raios do sol, pode sentir seu calor e sua luminosidade explosiva, pois as árvores apesar de circundarem-na, não interceptam a passagem dos raios solares.

Heródoto sente-se bem naquele ambiente, “me sinto todo ali!”, diz ele (integrado, e também parte daquela natureza), observando as árvores e o ipê. O sujeito afirma que não há comunicação verbal, o ambiente continua silencioso, sugerindo um santuário em estado natural. Em seguida, Heródoto se aproxima do pé de ipê e faz a mesma coisa, quando do encontro com o Ser masculino: sobe novamente na árvore, procura aquele mesmo galho em que anteriormente havia se sentado e se deitado, e da mesma forma nele se senta. Logo após executa ritualisticamente o mesmo procedimento, quando então no bosque, deitado no gramado, olhou para cima, e permaneceu a observar o balançar das folhas das árvores. Agora, confortavelmente instalado no referido galho do pé de ipê, ele olha para cima, na direção das árvores, como se de um ponto seguro e já conhecido, estivesse planejando uma ação, definindo metas, limites e possibilidades para explorar o desconhecido. Perante seus olhos as árvores assemelham-se a coqueiros - sugerindo símbolos mais propriamente masculinos que femininos - sendo que suas folhas lembram o telhado de uma casa. O sujeito permanece assim um tempo: sentado no galho do pé de ipê observando os galhos e as folhas das outras árvores, folhas estas que estão bem acima dele, devido a altura das árvores.

Chevalier & Gheerbrant (1996) afirmam que na linguagem maçônica “telhar” ou cobrir o templo simbolicamente significa abrigá-lo das intempéries resultantes da intrusão de profanos na assembleia. A telha significa assim, a proteção do segredo que o templo encerra. Os segredos do templo para Heródoto parecem estar relacionados aos mistérios que guardam entre si o masculino e o feminino, uma relação de opostos que pode ser conflituosa ou promovedora do crescimento psicológico.

Heródoto fica observando por entre as folhas, à procura de brechas que lhe permitam olhar o azul do céu. Mas como as folhas estão muito próximas umas das outras, elas se movem somente com o movimento do vento, que abre pequenos espaços que vão aparecendo em vários cantos da folhagem. O sujeito então, contempla o céu azul através destes espaços, “pequenos buracos no meio da folhagem”, diz ele. Segundo Chevalier & Gheerbrant (1996) o vento é sinônimo do sopro e, por conseguinte, do Espírito, do influxo espiritual de origem celeste. Nas tradições bíblicas, os ventos são o sopro de Deus. Foi o sopro de Deus que ordenou o caos primitivo, e animou o primeiro homem. Os ventos também são instrumentos da força divina: dão vida, castigam, ensinam; são sinais e, como os anjos, portadores de mensagens.

Segundo Chevalier & Gheerbrant (1996) os egípcios consideravam o azul como a cor da verdade. A Verdade, a Morte e os Deuses andam sempre juntos, e é por isso que o azul-celeste é também o limiar que separa os homens daqueles que governam, do Além, seu destino. Esse azul sacralizado - o azul-celeste - é o campo elísio, o útero através do qual abre seu caminho a luz de ouro que exprime a vontade dos deuses. Por sua vez, o símbolo do céu, conforme Chevalier & Gheerbrant (1996), congrega em torno de si os seguintes conteúdos:

“O céu é uma manifestação direta da transcendência, do poder, da perenidade, da sacralidade: aquilo que nenhum vivente da terra é capaz de alcançar. O céu é universalmente, o símbolo dos poderes superiores ao homem, benevolentes ou temíveis. Também emprega-se a palavra para significar o absoluto das aspirações do homem, como o lugar possível de uma perfeição do seu espírito, como se o céu fosse o espírito do mundo” (p. 227-30).

Observa-se então que o vento, o azul e o próprio céu, são cada um a seu modo, manifestações da divindade e expressões diversas dos anseios do elemento humano por alcançar a transcendência. Nesta dinâmica, o vento funciona como um agente facilitador que possibilita ao sujeito contemplar o azul do céu. Vislumbrar o azul do céu através destes pequenos “buracos” no meio da folhagem parece ser para o sujeito um evento de suma importância, pois representa o acesso momentâneo da transcendência divina, mesmo que seja de forma diminuta - por pequeninas brechas - e de relance, até que o vento não mude novamente as folhas de lugar.

Em seguida, Heródoto desce do pé de ipê e começa a subir numa das árvores. Chevalier & Gheerbrant (1996) afirmam que na qualidade de símbolo de vida, a árvore pode ser considerada como um vínculo, um intermediário entre a terra, onde ela mergulha suas raízes, e a abóbada do céu, que ela alcança ou toca com sua copa. E parece que foi exatamente este o papel da árvore, que o sujeito escolheu para encetar a sua escalada.

Enquanto vai subindo, Heródoto vai olhando a folhagem para poder ver o céu acima delas. Seu desejo é ver o céu por completo, acima das árvores, em toda a sua amplitude. Para chegar acima das árvores o caminho é longo e difícil. O tronco da árvore que ele escolheu para escalar é largo, e não possui galhos laterais que facilitem a escalada. Assemelha-se a um coqueiro, “bem largo”, reitera ele. O sujeito continua tentando subir. A uma certa altura pára para descansar. Quando se restabelece e retoma a jornada o diâmetro do tronco se reduz, o que lhe possibilita segurar-se com mais facilidade, e se firmar melhor com os braços. A seguir ele tem acesso aos primeiros galhos, os quais são os mais grossos, portanto, mais seguros. Apesar disso, Heródoto olha para baixo e sente vertigens, pois onde ele está é muito alto em relação ao chão. Mas, mesmo assim continua a subir, pois seu desejo de alcançar o topo da árvore, e dali vislumbrar a imensidão do céu, é pertinaz e inabalável. Observe-se que o sujeito não quer apenas ver o céu através de brechas contando com o favorecimento do vento, mas ele deseja efetivamente alcançar o céu, a imensidão do azul, tendo para isso, que se posicionar nos galhos mais altos e finos das árvores, que são os mais perigosos. Portanto, apesar dele parecer possuir maior identificação e confiança no ipê, são somente as árvores, representantes do feminino (sua anima), que lhe permitem alcançar o céu, e contemplá-lo em toda a sua amplitude. São elas supostamente, o psicopompo ou o veículo que lhe possibilita alcançar as alturas celestiais.

Quando Heródoto começa a visualizar os galhos mais finos da árvore, somente então se dá conta dos riscos que envolvem a sua proeza. “Para poder ver o céu é arriscado porque há muitas folhas”, diz ele. As folhas continuam interceptando a sua visão do céu, sendo necessário usar de outros recursos para afastá-las, parecendo ser insuficiente o auxílio do vento, somente. Prosseguindo, o sujeito pisa em dois galhos finos, que estão próximos. Todavia, muitas das folhas ainda não é possível afastá-las por estarem muito altas. Então, como já se encontra quase na ponta dos galhos, usa de um artifício, puxando com as pontas dos dedos os galhos cheios de folhas, desta forma conseguindo, enfim, ver o azul do céu em toda a sua extensão.

Note-se que a sua trajetória para chegar ao topo - acima das árvores - e alcançar o céu (a divina transcendência), é de fato acidentada e envolve muitos perigos e dificuldades, a começar pelo tronco de diâmetro avantajado, e sem galhos laterais, o que não facilita a escalada. Assim, o sujeito precisa parar para descansar. Quando encontra os primeiros galhos (os mais grossos e seguros), sente vertigens ao olhar para baixo, o que parece ser a expressão fisiológica do seu medo, as vertigens funcionando como um sinal de alerta face ao perigo, no momento em que toma consciência da altura em que se encontra e do possível risco de queda e de dano físico (o risco de morte está implícito).

Quando Heródoto consegue finalmente olhar o céu em toda a sua imensidão azul: “Com estas folhas afastadas já dá para ver o céu!” diz ele, inicia rapidamente o caminho de volta, sem que pudesse parar para contemplar e/ou fruir o sabor de sua vitória. Diferente da situação em que escalou o ipê - o Ser masculino - quando confortavelmente instalado no galho ficou a contemplar o mundo lá de cima (apesar de que o risco de queda também estava presente), a empreitada de subir nas árvores - o Ser feminino - parece ser muito mais difícil e perigosa, pois estas, desafiadoras em sua imponência e em seu estranho perfil de palmeira, parecem não lhe oferecer quase nenhuma segurança. Assim, com muito cuidado, pisando em alguns galhos e segurando em outros, Heródoto começa a descer da árvore. Ele vai se apoiando em outros galhos, tentando equilibrar-se. Agora que desceu um pouco mais, sente-se mais seguro. Todavia, há tensão na descida em função dos riscos e perigos que ainda existem, pois qualquer erro pode resultar em uma queda. Heródoto vai descendo devagar, cautelosamente, até que possa tocar os galhos mais fortes. Finalmente ele atinge o último galho. Em seguida, se abraça ao tronco, e se deixa deslizar vagarosamente, abaixado, até atingir o chão.

Tendo efetuado a descida da árvore, o sujeito se reporta imediatamente ao pé de ipê e com um olhar comunica o fato de haver vencido a prova que havia planejado em seus galhos. O ipê lhe sorri em sinal de cumplicidade e aprovação. Heródoto também sorri, fechando assim a guestalt. Finalmente, o sujeito se afasta, mas leva consigo o sorriso do ipê e o azul do céu que vislumbrou lá do alto, correndo todos os perigos - revelando assim o masculino e o feminino amalgamados, integrados, unidos. O fato do sujeito ter se ocupado em escalar tanto o ipê (operação já realizada anteriormente) quanto uma das árvores (ambos símbolos masculino e feminino, respectivamente) pode sugerir também uma forma de domar e conquistar a ambos, assimilando e incorporando seus mistérios e sua verdadeira essência, e ao mesmo tempo utilizando-se de dois caminhos diferentes (o masculino e o feminino) para alcançar o céu (a divina transcendência). Curiosamente, o fato de Heródoto ter escolhido subir primeiro no ipê quando já havia feito isso, sugere uma tentativa de se reassegurar de sua masculinidade e da força inerente a ela em território desconhecido, para então se confrontar com o feminino desafiador manifestado nas árvores. Por sua vez, esta essência correspondente ao jeito de ser masculino e feminino de cada uma das árvores, conforme já salientado, parece muito ambígua em se tratando de caracteres de gênero: um ipê com flores e árvores altas que se assemelham a coqueiros indica uma manifestação de androginia, ou seja, o masculino está presente no feminino, e vice-versa.

Heródoto sai do bosque devagar. Passa pela fonte, e sai, não mais por aquela saída alternativa que utilizou anteriormente (escalando o portão), mas continua descendo bosque abaixo, em busca de uma outra saída. Ele desce pelas escadarias que existem logo abaixo, onde se defronta com um enorme portão aberto. Heródoto sai por este portão (o caminho oficial) e vai embora. Lembre-se que da vez anterior o portão estava fechado. O fato dele estar agora aberto (na verdade, trata-se de um outro portão, situado em outra extremidade do bosque) sugere que tendo se efetuado a união dos opostos - coniunctio oppositorum - por meio da perigosa aventura do sujeito até o céu, e na volta, levando consigo o sorriso do ipê e o azul do céu, os caminhos para ele se abriram como que por encanto.

Vale salientar que no encontro entre o Ser masculino e o Ser feminino, o sujeito, mais do que os personagens em si, tem um papel extremamente ativo, e consegue efetuar a união dos opostos - masculino e feminino - dentro de si. Tendo efetuado o casamento interno, é possível então realizar o casamento externo. Conforme salientou Cavalcanti (1987) o homem e a mulher, apesar de serem regidos por princípios internos diferentes, necessitam um do outro para se complementarem (as árvores e o ipê de Heródoto juntos formaram uma família e trocaram entre si seus preciosos elementos, enriquecendo-se mutuamente). O homem precisa aprender a abandonar a sua consciência solar para permitir ser iluminado pela lua (aprendizagem que Heródoto efetua ao subir numa das árvores altas), e também a mulher necessita que a luz solar a ilumine (neste caso, a fonte de Heródoto iluminada pelo sol). Mas, muitas vezes, as exigências da consciência solar entram em conflito com as exigências da lua. Logos não quer ceder a Eros. É preciso a compreensão profunda desses aspectos para haver harmonia entre o sol e a lua, afirma a autora. Esta compreensão o sujeito obtém à medida que escala cada uma das árvores e assimila sua natureza íntima.

Muito embora Heródoto não tenha feito qualquer referência à lua, a citação acima se aplica perfeitamente à relação masculino/feminino por ele estabelecida, no encontro proposto entre o Ser masculino e o Ser feminino.

Conclusão

Viu-se que o legado da cultura patriarcal, pela negação do instinto e a repressão da sexualidade, ambos projetados na figura feminina, induzem ao conflito entre o sagrado e o profano nas relações de gênero. Ou seja, o campo do sagrado, as sutilezas do espírito e a busca da transcendência representados pelo céu não podem se imiscuir com o exercício da sexualidade, as pulsões do corpo e as manifestações mais grosseiras do ser humano personificados pela terra, o território do profano. Ocorre então uma dissociação e a emergência de conflitos nas relações entre o homem e a mulher. Heródoto nos mostrou, todavia, que a resultante desse jogo de forças feita por uma ordem masculina de mundo é uma profunda solidão, pois implica na negação e/ou ausência da anima, e junto com ela, todos os elementos que poderiam vir a complementá-lo, preencher suas lacunas, atender a suas necessidades emocionais, contribuindo por sua inteireza.

A combinação alquímica que possibilitou a resolução do conflito para o sujeito processa-se através de duas etapas antecedidas por um ato preparatório preliminar. Primeiro, Heródoto se certifica de sua masculinidade escalando o pé de ipê; em seguida, escalando uma das árvores enfrenta o desafio que se lhe impõe o feminino: alcançar o azul do céu (a divina transcendência), paradoxalmente contrariando todos os pressupostos da cultura patriarcal. Tendo cumprido o ritual a despeito do risco fatal de queda, efetua dentro de si a união de opostos (coniunctio oppositorum), e resolve assim o problema de sua solidão.

O ato preliminar preparatório teve a função para o sujeito de conhecer (e posteriormente introjetar) o mundo do feminino em seu espaço original, tendo tomado contato com seus vários elementos ali representados: a natureza, as árvores altas, a fonte com suas flores, que circundados por um muro conferiam a noção exata de um templo natural, mais propriamente um “temenos”. Símbolo da vida, viu-se que as fontes são representantes universais do sagrado, operando-se junto delas os encontros essenciais, sendo também um referencial para o amor e o casamento. As cores das flores que circundam a fonte (vermelho, amarelo, alaranjado) significam que em um templo sagrado as cores da paixão podem conviver harmoniosamente com o “ouro de Deus”, equilíbrio este conferido pela presença do alaranjado. Quem busca a transcendência divina não precisa renunciar à paixão, pois tudo isso é uma genuína expressão da natureza humana, elementos que constituem sua inteireza e sua totalidade, objetivo último do processo de individuação. Todos os elementos representados no território do feminino compõem esse grande mosaico que são os anseios do ser humano, desde as questões mais básicas até as mais sutis (em um “temenos” o portão de ferro, metal “impuro”, também tem a sua função de servir de passagem para o mundo profano). As formigas, como verdadeiros psicopompos, tiveram um papel fundamental ao indicar a Heródoto o caminho da fonte como a trajetória que o levaria à resposta que buscava para a resolução de seu conflito: a legitimidade da expressão de sua libido em um espaço sagrado.

O encontro do ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido vem se consolidar na etapa seguinte (encontro entre as figuras) quando o sujeito efetua a dupla escalada das árvores já citadas. Lembrando o simbolismo da árvore como figura que une a terra (mundo ctoniano) ao céu (mundo uraniano) ela também tem o sentido de centro, o que quer dizer: ponto de equilíbrio.

Nesta combinação química também foi importante o papel do sol. Se entre as árvores havia uma penumbra ambiente (muito diferente do sol que incidia abundantemente na calçada onde estava o ipê), naquele mesmo contexto das árvores os raios do sol agora atingiam a fonte. Lembrando que o sol é a fonte da luz, do calor, da vida, sendo que seus raios representam as influências celestes - ou espirituais - recebidas pela terra. Neste caso, o “céu” também se volta para o feminino representado pela fonte. O sol vem contrabalançar o que antes era apenas uma expressão da essência masculina.

Como se viu todo o mundo do feminino esteve prenhe de elementos do sagrado que deram sábias indicações a Heródoto quanto ao encontro do ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido, contrariando todos os pressupostos da cultura patriarcal. Tendo levado dentro de si a experiência (introjetado) ele pôde então efetuar a coniunctio quando lhe foi proposta a situação de encontro entre o feminino e o masculino. Observe-se então que, para que se desse a coniunctio foi necessário a anterior descoberta do ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido. Viu-se que a ação da coniunctio foi altamente terapêutica, pois ajudou o sujeito a trazer para a consciência e legitimar aquilo que foi negado, ou seja, o papel do feminino na busca da transcendência, a assunção de sua importância para a própria complementaridade, o reconhecimento de seu lugar de direito na cultura patriarcal, e a descoberta de que masculino e feminino têm a mesma essência. Com isto Heródoto resolveu, enfim, o problema de sua solidão.

Referências

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Cavalcanti, R. - O Casamento Do Sol Com A Lua. São Paulo, Círculo Do Livro, 1987. 153 P.
Chevalier, J. & Gheerbrant, A. - Dicionário De Símbolos. Rio De Janeiro, José Olympio Editora, 1996. 996 P.
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