Moda e arte sempre tiveram encontros e desencontros ao longo da história. Afinal, vestir pode ser considerado arte? Se arte for uma manifestação, expressão de um sentimento ou linguagem e/ou uma ferramenta de provocação, acredito que sim. Mas, existem maneiras de confirmar essa relação, já que desde sempre a moda por si é uma voz (de muitos, de alguns ou de um só) seja nas escolhas estratégicas de Georgiana Cavendish, Duquesa de Devonshire, seja nas cores das Sufragistas para se reconhecerem entre multidões, ou seja no pretinho básico da Lady Di, tao estrategicamente provocante que foi apelidado de Revenge Dress, ou, seja na Schiaparelli, que sempre dialogou com essa ideia. Hoje, vou te mostrar como.
A Maison Schiaparelli, fundada por Elsa Schiaparelli em 1927, sempre esteve na vanguarda da moda explorando ao máximo a interseção entre moda e arte. Elsa saiu da Itália e se estabeleceu em Paris, rapidamente se destacando por suas criações ousadas e inovadoras, frequentemente influenciadas pelo movimento surrealista que, assim como ele, bateram de frente com as normas estéticas da época e introduziram elementos de fantasia e ilusão na moda.
É fato que a moda e a arte sempre caminharam lado a lado, mas hoje poucos designers capturam essa fusão de maneira tão impactante quanto Daniel Roseberry na Schiaparelli. Desde que assumiu a direção criativa da maison em 2019, Roseberry tem reafirmado a sua essência surrealista e ousada desde sempre prova que a moda pode ser tão provocativa e inovadora quanto uma escultura de Alberto Giacometti, mesmo em um mundo onde os altos níveis de informação e mudanças constantes limitem a chegada do que é verdadeiramente novo.
Ao criar a Schiaparelli, Elsa acreditava que a moda deveria ser um campo de experimentação e foi isso o que fez com que a artista se conectasse tão profundamente ao movimento surrealista o que consequentemente, a levou a criar algumas das peças mais icônicas da história da moda, como o vestido de lagosta e o chapéu em forma de sapato, ambos concebidos em colaboração com Dalí.
Daniel Roseberry tem honrado e expandido esse legado. Em sua recente coleção de alta-costura primavera-verão 2025, ele reafirma sua habilidade de transformar roupas em esculturas vivas. A coleção, inspirada no mito de Ícaro, apresenta silhuetas arquitetônicas que desafiam a lógica tradicional da costura. As asas metálicas, os volumes dramáticos e os tecidos estruturados evocam a tentativa de Ícaro de voar além do permitido, simbolizando a busca incessante pelo sublime, o que também explica a locação escolhida para o desfile, feita sob um teto que representa o céu e evoca o paraíso no Petit Palais.
O surrealismo, sempre presente sempre no DNA da Schiaparelli, não foi colocado de lado pelo olhar de Roseberry, que tem conseguido equilibrar com primor a essência da marca com o mundo e as exigências do mercado contemporâneo. Elementos como rostos esculpidos em peças tridimensionais, olhos dourados e bustos moldados em metal criam uma estética de estranhamento estrategicamente escolhida contemplando emoções e narrativas que vão além do vestir. A moda de Roseberry para Schiaparelli não se contenta em ser bela ou funcional; ela deve provocar, instigar, contar histórias e evocar reações, assim como a arte.
Mas é claro que o compromisso em unir arte e moda não é exclusivo dessa maison. Alexander McQueen foi um dos designers que mais elevou a moda ao status de arte, criando desfiles que pareciam performances conceituais e peças escandalosas que sozinhas construíram um espetáculo. Iris Van Herpen, por sua vez, segue esse caminho ao fundir tecnologia e técnicas artesanais para criar vestidos que parecem desafiar as leis da física. John Galliano, especialmente em sua época na Dior, trouxe para os desfiles narrativas dramáticas e roupas que mais pareciam personagens saídos de uma pintura barroca e Coperni que uniu performance, drama e curiosidade nas passarelas.
Mas, o que diferencia Daniel Roseberry é sua capacidade de reinterpretar a tradição surrealista de Elsa Schiaparelli de uma maneira moderna e acessível, sem perder a teatralidade e o impacto visual. Ele entende que a moda pode ser um meio de transcendência, um campo onde os limites da realidade podem ser desafiados e expandidos. Ao resgatar a audácia criativa de Elsa e adaptá-la aos dias atuais, Roseberry não apenas reforça a identidade da maison, mas também reforça a ideia de que moda é, sim, uma forma de arte. O trabalho de designers como ele confirma diariamente que a alta-costura pode ser mais do que um luxo para poucos; pode ser um espaço de experimentação, de drama, rejeição e de beleza, mas que sempre é magnético. Em tempos onde a moda muitas vezes se rende à simplicidade e à comercialização extrema, Roseberry recupera o respiro que relembra aos profissionais do setor o porquê de terem escolhido uma moda que honra o passado enquanto projeta um futuro onde design e a arte permanecem indissociáveis.