Nunca antes na jornada humana deixamos de nos deparar com o enigma de como lidar com questões que transcendem a objetividade da vida social. O constante desenvolvimento dos processos de desmistificação e compreensão da formação psíquica se edifica nesse patamar, atravessando os caminhos da história e impulsionando o conhecimento rumo à sua própria superação.

Esse movimento natural encontra aplicação no cotidiano e nas esferas da psicologia, desafiando o encerramento ou a superação da visão objetivista diante das relações sociais, como vemos nas práticas de tratamento psicológico que consideram os aspectos mais sensíveis da individualidade. Em certa medida, desde o início de seu processo de estruturação, a psicanálise se depara com os desafios impostos pelas instituições de cuidados à psique. No caso de Anna O., por exemplo, já se encontram apontamentos nesta direção. Na própria lógica de entendimento da histeria no final do século XIX fica evidenciada uma certa normatividade antagônica às patologias, característica de uma organização social capitalista, que levava os enfermos a condições desumanas de expropriação de suas próprias subjetividades. Reduzir a compreensão do sofrimento psíquico aos seus sintomas somáticos, como feito sistematicamente nas instituições psiquiátricas, é expressão não só do desprezo burguês pela vida de alguns, mas também das falhas de um discurso psiquiátrico hospitalocêntrico e hegemônico.

Este entendimento mais ampliado acerca do aparelho psíquico traz consigo a necessidade de reformulação na forma de se pensar a fronteira entre normal e patológico. Compreender as origens e os possíveis direcionamentos das patologias da mente, a partir das movimentações do inconsciente, agride a imagem narcísica de um sujeito humano dono de seus afetos e controlador de seus comportamentos e ações. A psicanálise exige o reconhecimento da não onipotência do Eu, na medida em que atesta a existência do inconsciente como agente ativo no aparelho psíquico.

Em seu texto intitulado Psicopatologia da Vida Cotidiana, Freud explora essa ideia. Ao aproximar as formações inconscientes da vida cotidiana o autor dilui as fronteiras entre o normal e o patológico, trazendo uma compreensão mais clara de que o inconsciente é que impera a vida psíquica. Nesta obra, de forma geral, o autor expõe como os atos falhos, os esquecimentos, os lapsos verbais e outros atos da vida cotidiana na verdade podem ser expressões do desejo e inconscientes, oferecendo direcionamentos consistentes para a compreensão do aparelho psíquico do sujeito. Assim, se determinadas confusões mentais são aptas a ocorrerem com qualquer pessoa, doentes ou não, sugere-se que a distância entre doença e normalidade é menor do que o discurso psiquiátrico e normativo consegue sustentar.

Osvaldo dos Santos, figura importante ao lado de Nise da Silveira durante a reforma psiquiátrica brasileira, destacou a necessidade imperativa de distinção. Ele apontou que os métodos institucionalizados da época eram violentos e ineficazes para promover uma dignidade humana autêntica. Propôs, assim, uma ruptura com as técnicas então vigentes, abrindo espaço para o desenvolvimento das Comunidades Terapêuticas e uma nova abordagem no tratamento daqueles isolados do convívio social.

O maior desafio na luta contra instituições que negligenciavam o tratamento psiquiátrico era reconhecer que o isolamento não era mais uma alternativa terapêutica viável. O objetivismo da sociedade moderna já não se adequava a esse contexto. Era preciso enxergar o indivíduo não como um enfermo incapaz de interações sociais, mas como alguém capaz de construir sua própria identidade a partir da compreensão de sua humanidade.

A "mudança de mentalidade" tornou-se crucial para reinventar os processos terapêuticos. Era necessário formar novos profissionais para uma nova psiquiatria, que compreendessem a importância de se posicionar no mesmo nível dos pacientes, equilibrando autoridade com sensibilidade.

No entanto, apesar dos avanços nos manicômios, as prisões continuam sendo lugares de atraso contemporâneo. O Estado muitas vezes falha em proteger aqueles a quem priva da liberdade. Os processos de ressocialização se tornam momentos finais de punição, condenando os indivíduos ao abandono e ao definhar.

A transformação da liberdade em aprisionamento é uma violência que se materializa na forma de esquecimento e abandono. As prisões obedecem a instituições antagônicas à liberdade, refletindo uma metalinguagem empobrecida e um discurso arcaico de submissão.

Contra esse destino sombrio, é essencial derrubar o tecnicismo que sustenta as prisões e buscar uma metodologia que reintegre os detentos à comunidade. Isso demanda uma educação que combata a barbárie e promova a resiliência democrática, como testemunham os movimentos antimanicomiais.

Da mesma forma, os regimes de isolamento durante a pandemia evidenciam as falhas das estruturas que sustentam a saúde mental, apontando para a necessidade de uma nova moralidade institucional. É urgente denunciar os subterfúgios mecânicos que perpetuam práticas genocidas e buscar soluções que enfrentem a violência estrutural, permitindo enxergar a realidade para além das paredes.

Em tempo, é importante lembrar que inúmeros desafios impedem esta aproximação e a efetivação da presença ética da psicanálise nos espaços e instituições de saúde pública. Entretanto, urge a necessidade de uma maior elucidação destes desafios e se estruturar possibilidades de superação. Mesmo que distantes, a hipótese é que o campo da Psicanálise e o campo das Políticas Públicas de Saúde Mental convergem na produção de uma forma revolucionária de operar. Revolucionária no sentido de criar uma nova forma de se tratar o sofrimento psíquico, que não aquela que o agride e exclui.