O dia foi 14 de Setembro de 2023, poucas semanas depois de o novo filme de Woody Allen (Coup de Chance) ter sido exibido em triunfo no Festival de Veneza. Na ocasião, a receção crítica foi muito favorável e evocou Match Point, um tópico demasiado regular nos elogios das últimas duas décadas a Allen e que em geral, se não erro, indica que o crítico não conhece muito do seu grande cinema, das décadas 1970-1990. Seja como for, a referência é boa, dado que depois disso a cinematografia de Woody Allen teve realmente momentos baixos – em especial os bilhetes postais fílmicos feitos eme Paris, Roma, Barcelona, não exatamente maus, mas facilmente olvidáveis (mau, mesmo, talvez só Irrational Man, acrescento). O retorno do autor de Zelig ao favor da crítica, de forma que não conhecia desde Blue Jasmine foi, no entanto, marginalmente ensombrado pela ressurgência de «ativistas» de hashtag, clamando contra os crimes que Allen nunca cometeu.

Vale a pena relembrar os factos (recorrendo apenas à memória): há cerca de 30 anos, num mundo ainda sem redes sociais, Woody Allen separou-se litigiosamente da sua mulher, Mia Farrow, para viver com uma das filhas adotivas desta, então muito nova (e muito mais nova do que Allen). O clichê da mulher trocada por outra mais nova ficou agravado pelo lado intrafamiliar da situação, mas a Farrow não bastou isso: acusou Allen de violar uma das crianças do casal. Prova, nenhuma, mas o que conta é o lixo que se lança. Na verdade, logo na altura, o caso foi julgado em duas ocasiões diferentes, sendo Allen em ambas as vezes ilibado e tendo sido notado no segundo julgamento que Farrow tentou influenciar testemunhas. O caso morreu, com Allen a continuar a filmar magnificamente e a carreira de Mia Farrow a acabar. Mais de 20 anos depois, e sem qualquer dado novo, a cavalo de uma campanha mediática (#metoo) justificada em casos cuja gravidade é real mas sem relação com Allen (Maxime, Jeffrey Epstein), as acusações a Allen, agora pela vítima imaginária, voltaram, com o cortejo de inanidades e baixezas conhecido: dificuldade em publicar o seu livro de memórias, atores que abjuraram o seu trabalho anterior com ele (sem qualquer fundamento que não a sua gestão de carreira), produtores recusaram financiamento. Isto deve-se em boa medida ao fato de o mesmo sistema de Justiça que o deu como inocente, manteve a custódia de Keaton sobre crianças que o próprio tribunal observou terem sido objeto de tentativas de pressão. A vida dessas crianças, na medida em que é conhecida, e Allen fala disso na sua autobiografia, ficou traumatizada e o resultado maior disso é a monstruosa persistência na acusação que, mesmo entre gente que dispõe de educação formal, meios e (supor-se-á) independência, se persiste em escutar sem rejeitar como merece. Há exceções, claro, mas a realidade é grosso modo esta (e prejudica Allen mesmo no que ele faz; a autobiografia demora-se excessivamente nisto, em prejuízo do que mais interessaria ao leitor). Entretanto, o jornalismo, o mainstream e não apenas o «de sarjeta», participa nesta obscenidade, enquanto rasga as vestes contra o populismo «dos políticos», evidenciando bem como é hoje indistinguível do entretenimento e da sociabilidade de redes em que o pensamento e a informação se querem em 140 caracteres (ou menos, de preferência).

O retorno de Allen aos filmes, ainda para mais com uma obra de bom nível, o seu regresso aos palcos, com a banda de jazz com que toca, a sua exposição pública em geral, acicataram de novo quem não quer saber de fatos mas apenas de acusações – no caso nem isso, pois a acusação foi julgada e afastada por tribunais há três décadas, agora é apenas calúnia. Sem poder ver o filme em Lisboa para já, foi por isso, com um misto de prazer por poder conviver com a inteligência e o humor de Woody Allen e de reticência melancólica por antecipar um agitprop qualquer, que fui à Cinemateca de Lisboa tentar levantar bilhete para a sessão de Manhattan antecedida de conversa entre Allen e Ricardo Araújo Pereira. Tendo já visto todos os seus filmes, lidos os seus livros e assistido a um concerto seu, ir até lá foi como um dever bem-vindo. Infelizmente, inviabilizado. Mas, felizmente, pela revigorante razão de, antes mesmo da hora a que os bilhetes iam ser disponibilizados (apenas 60 minutos antes da sessão, uma política no mínimo infeliz da Cinemateca), já a fila era tão longa que, por uma vez a expressão é apropriada, dava a volta ao quarteirão. Sem chance de entrar na sessão (sei bem a capacidade da sala) foi com surpresa e genuíno alívio que vi a total ausência de manifestantes, e a mistura de idades – comum na Cinemateca, mas aqui reforçada – entre os que estavam à espera de conseguir entrar. Parece que a sessão decorreu de forma confusa e atrasada, à portuguesa, com o expediente nacional de culpar os outros, no caso a entourage de Allen. Pelo menos, decorreu sem cenas tristes.

William Friedkin, o recém falecido realizador de O Exorcista, entre outros filmes, um dia mencionou Allen como o maior realizador vivo, por motivos aliás discutíveis; e, até independentemente de rankings desse género, a grandeza da Obra de Woody Allen (50 longas metragens) é um caso de estudo no cinema. Todavia o mais relevante nem é isso: é revigorante ver alguém que foi caluniado, perseguido e prejudicado, enquanto quem o fazia segue impune, nunca desanimar nem decair, perseverando tanto como autor como pessoalmente (a sua ligação escandalosa de há 30 anos é hoje um casamento, com filhos, de uma duração invulgar e sem casos a afetá-lo).

Quando este artigo for publicado já terá estreado e saído de cena Coup de Chance, «filme europeu» (por ser falado em Francês) desse cineasta tão europeu que é Allen (pelos temas e atores com que trabalha mais do que pelos filmes recentes em diversas cidades europeias). Falou-se que talvez seja o seu último, como se se pudesse saber essas coisas antecipadamente. Seria, em todo o caso, sair por cima. Mas há sempre a esperança de que o novo nunca seja o último – mesmo um filme fraco de Woody Allen seria brasão de muitos outros autores.