Em 2017, foi vendido o Salvator Mundi (1500) de Leonardo da Vinci (1452-1519). A venda a um comprador anónimo deu-se em Nova Iorque, levada a cabo pela Christie’s, tendo chegado aos 450 milhões de dólares (uma impressionante quantia de cerca de 380 milhões de euros). Tal como acontece com outras obras-primas, a própria “história de vida” do quadro é interessante. A pintura foi concluída no ano secular de 1500, ano em que os portugueses chegaram ao Brasil. Terá sido entregue ao rei Louis XII de França, que a tinha encomendado. Passados 125 anos, o quadro foi para Inglaterra, na altura do casamento da princesa Henrietta Maria de França com o rei Carlos I. Mais tarde, em 1763, desaparece sem deixar rasto, reaparecendo já no século XIX, nos Estados Unidos, na colecção de Sir Frederick Cook. Em Junho de 1958, a obra regressa a Inglaterra e é vendida pela Sotheby’s a alguém chamado «Kuntz». Em 2005, foi vendida novamente a Alexander Parish, por 10.000 dólares. Sete anos mais tarde, vendida novamente a Yves Bouvier, por 75/80 milhões de dólares. Logo depois, vendida novamente ao milionário russo Dmitry Rybolovlev, por 127,5 milhões de dólares. Em 31 de Março de 2019, o seu paradeiro perdeu-se novamente. Parece que já apareceu e está na Suíça!

Neste texto, não se pretende discutir questões como a autenticidade do quadro ou os valores exorbitantes atingidos nas suas sucessivas vendas. Em vez disso, far-se-á uma interpretação da obra em si. Em particular, das características geométricas que oculta.

O artista/cientista italiano Leonardo da Vinci é uma figura proeminente da história universal. Frequentemente descrito como arquétipo da renascença, é muitíssimo mais do que isso. A palavra «universal» não está a ser usada em vão: Leonardo representa a insaciabilidade da curiosidade humana e o infinito alcance da inventividade. Sendo alguém dotado artística e cientificamente de forma quase sobre-humana, representa o que de melhor pode sair de todos nós. Pinturas como a Virgem dos Rochedos (1483-1486), a Última Ceia (14951498) ou a Mona Lisa (1503-1506) são consideradas obras-primas intemporais.

No entanto, talvez a maior obra-prima de Leonardo sejam os seus esboços, os seus rascunhos, os seus estudos sobre todos os assuntos – destaque-se, todos os assuntos. Estudos e esboços que ele fazia continuamente, uma «enciclopédia pessoal» que abordava tudo o que existiu, existe e existirá. Os manuscritos de Leonardo são de cortar a respiração. Observe-se o incrível estudo sobre o feto humano (Imagem 1), sobre cavalos (Imagem 5), sobre flores (Imagens 7 e 9).

Já houve até quem animasse estes esboços de forma a tentar «visualizar» o que se passava na cabeça do mestre (ver, por exemplo, aqui). Nada escapou à curiosidade de Leonardo: culinária, engenharia associada a todo o género de máquinas e construções, astronomia, física, pintura, escultura, música, cor, anatomia,... Percebe-se uma concepção interdisciplinar, unificadora das ciências, artes e humanidades. Para Leonardo, um bom pintor tinha de ser um bom cientista. Um bom cientista tinha de ser um bom escultor. A verdadeira competência necessitava, inevitavelmente, de um conhecimento profundo e global. Os estudos de Leonardo não têm preço. Considerando a magnitude desconcertante destes objectos, percebe-se que colocar-lhes um preço é ofuscar o seu brilho. Um preço é mensurável e comparável. Os cadernos de Leonardo são absolutamente incomparáveis e incomensuráveis. Esta ideia explica, de alguma forma, os preços exorbitantes do Salvator Mundi.

Iniciando a análise do Salvator Mundi, é necessário fazer uma menção prévia à proporção divina (ou rácio dourado, ou número de ouro). Esta proporção constituiu objecto de grande interesse ao longo da história. A primeira definição do termo aparece na obra magna da história da matemática, os Elementos de Euclides (séc. III a.C.). Aí, o famoso matemático grego chama-lhe «divisão em extremo» e «rácio médio», por se tratar da divisão de um segmento em duas partes desiguais com uma propriedade: a razão entre o segmento inteiro e a parte maior é igual à razão entre as partes maior e menor. Dimensões artísticas de acordo com a proporção divina têm sido por vezes consideradas as mais belas e harmoniosas.

Para os matemáticos gregos, as construções geométricas com régua não graduada e compasso constituíam uma espécie de pináculo da perfeição. Entre essas construções, o rectângulo de ouro está intimamente associado à proporção divina. Para os geómetras gregos, a noção de gnómon era fundamental. Um gnómon geométrico é uma figura que, acrescentada (ou retirada) à anterior, faz nascer outra semelhante à original. O gnómon é «o que mostra», «o que indica», ideia que também está patente num ponteiro de um relógio de sol, daí o uso da mesma palavra. Quando se retira a um rectângulo de ouro um quadrado interno de lado comum com o lado menor do rectângulo, surge um novo rectângulo de ouro. Esse quadrado que se retira é o gnómon geométrico do rectângulo de ouro.

Muitos estudiosos revelaram a utilização da proporção divina e de rectângulos de ouro em inúmeras obras de arte. No entanto, muitos desses estudos são pouco fundamentados e, por vezes, forçados. Esse facto não é de espantar. Quando as pessoas querem encontrar fenómenos interessantes e padrões inesperados, conseguem fazê-lo. A experiência diária mostra-nos que ocorrem muitas coincidências. No entanto, o que seria inesperado seria elas não acontecerem, uma vez que há milhões de tipos diferentes de coincidência. Quando uma ocorre, a tendência é esquecer todas as que não ocorrem, como descreve Martin Gardner em Aha! Gotcha: Paradoxes to Puzzle and Delight (Capítulo dobre o Paradoxo da Coincidência, 1982). A verdade é que uma coincidência só é estranha quando é definida a priori. Quando a coincidência é pensada a posteriori, como acontece com muitos estudos sobre ocorrências da proporção divina na arte, o mais certo é haver um certo exagero, ainda que possivelmente inconsciente. Sobre estes equívocos, o leitor pode ler o artigo Misconceptions about the Golden Ratio, do matemático da Universidade do Maine, George Markowsky.

Muitos defendem a ocorrência da proporção divina em várias obras de Leonardo da Vinci. Talvez a tese deste género mais conhecida seja sobre o Homem de Vitrúvio, mais um lindíssimo desenho feito por Leonardo em 1490 (Imagem 5).

O arquitecto romano Marcus Lucius Vitruvius Pollio (séc. I a.C.), conhecido como Vitrúvio, na sua obra Os Dez Livros de Arquitectura, descreve as proporções ideais entre as diversas partes do corpo humano. O Homem de Vitrúvio de Leonardo aborda a mesma temática. O texto com que Leonardo acompanha a gravura segue em traços gerais as mesmas ideias de Vitrúvio. Todas as relações tratadas correspondem a razões entre números inteiros, portanto a números racionais. Contrariamente a uma ideia muito difundida, o desenho de Leonardo não se relaciona com a proporção divina. Por vezes denominado o Cânone das Proporções, o Homem de Vitrúvio está actualmente na Gallerie dell´Accademia em Veneza. A tese sobre a aparição da proporção divina no Homem de Vitrúvio terá surgido do facto de Leonardo Da Vinci ter ilustrado com desenhos de sólidos regulares a obra A Divina Proporção de Fra Luca Pacioli (1445-1517) (um exemplo aqui). Este trabalho, contudo, foi escrito em 1498 e publicado em 1509, enquanto o Homem de Vitrúvio foi concluído ainda antes de Leonardo se ter encontrado com Pacioli, em 1492.

Quanto à presença da proporção divina no Salvator Mundi, o exagero já não parece existir. Para se argumentar sobre essa possibilidade, comece-se por realçar alguns pormenores essenciais do quadro.

O fundo completamente negro de Salvator Mundi faz com que todas as atenções se centrem na imagem de Jesus Cristo. Nada mais importa sem ser Jesus Cristo, o salvador do mundo. Segundo Martin Kemp, professor emérito de Oxford e um dos maiores especialistas em Leonardo, «It had that kind of presence that Leonardos have. The Mona Lisa has a presence. So after that initial reaction, which is kind of almost inside your body, as it were, you look at it and you think, well, the handling of the better-preserved parts, like the hair and so on, is just incredibly good». (Ver aqui).

Há quatro elementos fundamentais no quadro. Um deles é o interlaçar dos dedos da mão direita, gesto religioso que remonta aos primeiros tempos do cristianismo. Para os romanos, o gesto estava associado ao acto de querer falar. Quando Constantino despenalizou o cristianismo, o gesto foi assimilado e associado ao acto de benzer. Outro elemento é o rosto de Cristo. As suas feições foram propositadamente concebidas de forma a serem andrógenas. O masculino e o feminino aparecem unidos perante o divino. Um terceiro elemento é a toga de Cristo, concebida a partir de lapis lazuli, de cor azul forte. Esta cor, uma das preferidas de Leonardo, ajuda a criar uma sensação de força e presença divina vincada. Finalmente, a esfera transparente na mão esquerda divide opiniões. Na opinião de Martin Kemp, é uma referência às esferas utilizadas em modelos geocêntricos. No entanto, uma opinião muito interessante e plausível é dada pelo escritor norte-americano Walter Isaacson, autor de várias biografias, uma delas de Leonardo da Vinci (será transformada em filme, onde Leonardo DiCaprio fará de Leonardo da Vinci). Para Isaacson, Leonardo não pintou a distorção que há quando se olha para um globo deste género porque não o quis fazer. É quase certo que foi de propósito, uma vez que Leonardo era grande estudioso de efeitos ópticos, tendo escrito sobre esses efeitos nos seus manuscritos. E fez isso na altura em que concebeu o Salvator Mundi. Sendo assim, a esfera acrescentará um fenómeno sobrenatural à obra, simbolizando o facto de Cristo ver sempre tudo o que se passa no mundo sem qualquer distorção.

Gary Meisner, autor do livro The Golden Number, defende que estes elementos do quadro estão ligados através da proporção divina (ver aqui). E, realmente, neste caso, a evidência é bastante forte. Comece-se por delimitar o rosto de Cristo com um rectângulo de ouro.

A primeira observação a fazer relaciona-se com o facto do gnómon desse rectângulo enquadrar na perfeição a esfera que pousa na mão esquerda (Imagem 6).

A segunda observação a fazer relaciona-se com o emblema na toga de Cristo. Se se utilizar um segundo gnómon, associado ao rectângulo de ouro indicado pelo primeiro gnómon, obtêm-se um terceiro rectângulo de ouro. Esse rectângulo delimita na perfeição o emblema de Cristo (Imagem 2).

A terceira observação a fazer relaciona-se com a mão direita de Cristo, aquela que benze. Se se prolongar o lado do segundo gnómon, obtêm-se mais um rectângulo. Esse rectângulo delimita na perfeição a mão em causa (Imagem 4).

Cada gnómon ocorre em Cristo, Aquele que indica. Indica, sem distorção, os destinos na Terra (esfera), indica a protecção divina (acto de benzer), indica os caminhos da Igreja (emblema de Cristo).

Esta interpretação não parece ser fruto de coincidências. É demasiado contextualizada para o ser. Ao contrário do que acontece com obras como o Homem de Vitrúvio, este quadro foi concebido pouco depois do encontro com Pacioli. Além disso, a justaposição de linhas é perfeitíssima (ver aqui um vídeo elaborado propositadamente para acompanhar este artigo). O tema do quadro é o divino e, por isso mesmo, chama pela proporção divina e por um ideal de perfeição.