O que fica da História é o que dela se conta.
João Mário Grilo

José Luís Borau, ao analisar ligações entre o cinema e a pintura, afirma que há dois tipos de relações que se podem estabelecer: uma é a de presenças e outra de influências. Na primeira há uma escolha consciente do realizador. Na segunda há a interferência do repertório visual deste, sem que, em muitos casos, o mesmo se dê conta. O Processo do Rei, de João Mário Grilo (1989), está no primeiro caso. As escolhas são conscientes porque ele queria que o espaço cénico transportasse os espectadores ao séc. XVII. Sabendo da impossibilidade da tarefa, procura, no cinema e na pintura, recursos que o ajudem a chegar perto do seu intento. O filme é baseado num documento histórico que fala sobre o processo ao qual foi submetido o Rei D. Afonso VI, o Vitorioso.

Por que razão recuperar da História aquilo que deveria ser esquecido? Um rei doente, hemiplégico, incapaz física e mentalmente, tomado de paixões violentas; um rei que o foi por acaso, já que seu irmão mais velho morrera. Um rei preterido pela mãe, que preferia o outro irmão e que foi, por isso, obrigada a entregar o poder a D. Afonso VI e a fechar-se num convento. Um rei que foi processado porque a sua rainha o acusara de não consumar o matrimónio. Um rei melancólico, que refletia a melancolia e o desamparo de um país entre nações poderosas, guiado por interesses que não eram os seus próprios. Por que razão, em 1989, recuperar esta história? Para o realizador, “o que fica da História é o que dela se conta”, e entra então num processo de anamnese: é preciso voltar às memórias para que elas sejam revividas e para que o seu luto se faça presente. Só assim poderemos então denegá-las.

O que fica da História é o que dela se conta, diz João Mário Grilo. E não só o que dela se conta mas, sobretudo, a maneira como ela é contada. Ao longo dos séculos fomos incorporando um repertório imagético que condiciona a maneira como vemos os filmes e as personagens que os povoam. Para o filme O Processo do Rei o realizador tinha um repertório de imagens de época e retratos de D. Afonso VI. Mas estes retratos não pareciam fieis e não desvelavam aquilo que o realizador queria para seu filme: um rei melancólico e vencido já a partida. Um rei que era, na altura, o autêntico retrato de um povo que não queria ver-se assim espelhado. Era preciso recriá-lo.

O processo de construção do filme recorre à vasta tradição cinematográfica de recriação histórica. Recorre aos tableaux vivants, à pintura da época, a documentos históricos e recorre, fundamentalmente, a uma ideia que define, por excelência, o Séc. XVII – o conceito de encenação. Toda a arte barroca assenta na encenação e assim, João Mário Grilo abre mão de recursos puramente cinematográficos para recuperar a História. Despe seu filme da narrativa decimonónica, típica do cinema clássico, e dispõe as personagens num palco mais adequado para o desenrolar desta história.

Toda encenação tem a ver com teatro e teatralidade, pois foi o teatro que “desde cedo definiu formas, práticas e noções que modelaram a nossa vida social e o seu imaginário”, disse Jacques Aumont. A questão que surge é: como é que o cinema adequa o princípio da cena teatral ao seu próprio meio? Eisenstein, ao falar da relação entre o cinema e o teatro dizia que, enquanto no teatro temos a mise en scéne, no cinema temos a mise en cadre. Este realizador, que também foi encenador, conhecia a fundo as duas formas artísticas e, desde cedo, reconheceu que era necessário estabelecer para o cinema, arte ainda muito jovem, uma série de categorias próprias para evitar que ele sucumbisse às outras artes e ficasse apenas como um subsidiário das mesmas.

As relações entre o teatro e o cinema não foram ainda devidamente exploradas, apesar de alguns autores se terem debruçado sobre a questão. Aumont e Michel Marie distinguem três modos principais de relação destas duas formas artísticas: o teatro filmado, a “areação” da peça, - ou seja, o trazer da cena para o exterior – e, ainda, a assunção da teatralidade do texto e da representação pelo realizador. Neste último caso, assume-se claramente que tanto uma quanto outra forma artística estão baseadas numa série de convenções que se alteram com o tempo, o que ocorre em todas as artes, mas que são perfeitamente distinguíveis, em determinados momentos. Assumir a teatralidade no filme é negar a sua filiação ao realismo, ou seja, é assumir a impossibilidade de o cinema revelar, efetivamente, o real.

Falar sobre a questão da representação entre teatro e cinema implica, antes de tudo, dizer de que teatro e de que cinema se está a falar. Porque há muitos pontos de contacto entre os dois, inclusive no que diz respeito às convenções da representação, já que o cinema acaba por herdar do teatro uma série de modelos. Basta pensar no cinema mudo e no cinema produzido pelas vanguardas históricas: tanto num como no outro, o cinema e o teatro partilham conceções formais e de conteúdo. O certo é que, para o cinema se afirmar, enquanto sétima arte, teve de cometer um parricídio necessário e fundamental para seu desenvolvimento enquanto arte autónoma.

O cinema industrial, feito para o grande público, buscou um modo de representação que ocultasse a representação. Queria ser visto como algo que apresenta a vida mesma e não algo que a representa. Usava o ecrã como uma janela e convidava os espectadores a espreitar o que se passava, a participar, de alguma maneira, desta outra vida que se instalava ali. O início do cinema, antes do cinematógrafo dos Irmãos Lumière, está profundamente ligado à pulsão escopofílica. Afinal, o quinetoscópio de Edson incitava as pessoas a olharem imagens por um buraco, semelhante ao buraco de uma fechadura, e a gozar voyeuristicamente imagens feitas à medida para este prazer solitário.

Ao contrário do teatro que, enquanto arte do espetáculo, é arte pública e para o público, o cinema nasce como um ato solitário, um prazer não partilhado. O espectador do cinema começa como um voyeur e, mesmo quando as imagens saltam para fora do quinetoscópio, a pulsão permanece. Ver cinema é espreitar a vida alheia. E é isto que o cinema do M.R.I. procura incentivar. E para isto usa o teatro, dentro dos filmes, como o espaço da representação. Uma peça, dentro de um filme, tem, antes de tudo, a função de demarcar uma zona entre a apresentação do mundo, feita pelo cinema, e a representação do mundo promovida pelo teatro.

Eis o paradoxo da imagem do cinema: de um lado ela dá-nos a sensação de que quase tocamos a realidade que nos circunda, mas somos limitados pelos enquadramentos e só temos permissão para ver o que se passa dentro do espaço in. Tornamo-nos voyeurs, voluntária ou involuntariamente. E como voyeurs, o que espreitamos são fragmentos do real. Ou assim o cinema nos quer fazer crer: não há representação, mas apresentação.

No filme O Processo do Rei, encontramos a encenação marcada pelo lugar calculado do espectador. O realizador mostra-nos, no ecrã, um palco que vai alterando os cenários, e que não é um palco sequer, pois as locações são feitas em espaços reias, mais o desenrolar da ação é feito a pensar na mise-en-scène, não na mise-en-cadre. Os atores realizam, em cena, movimentos limitados de entradas e saídas, como num palco italiano. Movem-se na horizontal ou na perpendicular, cruzando o espaço cénico que aparece, no filme, limitado, como se a saída de cena só pudesse ser feita para os bastidores.

A limitação do espaço cénico é uma maneira de obrigar o espectador a permanecer em seu lugar: expectante. Não pode interferir na ação e nem sente que deva fazê-lo. O filme, neste caso, não se apresenta como janela para o mundo, mas como um espaço privilegiado de representação em mise-en-abîme, tão típica do período barroco e também da obra de arte na contemporaneidade. Deste processo não somos voyeurs, somos testemunhas oculares.

O cinema aprendeu, muito cedo, a mentir. E a chave da construção desta ilusão da realidade é a montagem. A ideia de montagem, conforme Vicente Sánchez-Biosca, está presente em toda a arte do século XX. Nesse sentido João Mário Grilo expande os limites do palco através do cinema ao insinuar a presença dos bastidores em cena. Aliás, podemos afirmar que a sempiterna presença dos bastidores funciona como um maneira de o filme afirmar-se enquanto documento histórico, tecido por outrem, e visível apenas mais tarde, quando é lido e (re)apresentado, reconhecendo, no entanto, a impossibilidade de, na contemporaneidade, revelar alguma verdade sobre o tema, optando por apresentar, conscientemente, uma possível versão. A montagem aqui é cinematográfica, unifica os fragmentos e cria um tempo-espaço particular, mas aquilo ao que o espectador tem acesso, o que é visível no ecrã, não é o procedimento, ou gesto, que intensifica a ideia de montagem, pelo contrário, parece estar sentado diante de uma cena fixa, que se altera com o abrir e fechar das cortinas.

Apesar de o cinema ter absorvido o modelo da cena italiana como modelo de exibição, o lugar do espectador aqui não é o mesmo do lugar do espectador do teatro. Não é o mesmo porque o cinema, através da manipulação do ponto de vista, dos movimentos da câmara, do uso dos recursos que possui para a construção da imagem, leva o seu espectador a sair do lugar, a penetrar no ecrã, a saltar da cadeira para dentro daquela realidade outra, criada pelo realizador.

Uma das diferenças marcantes entre o teatro e o cinema é a capacidade que o segundo possui de encenar o espaço, de torná-lo único ou multifacetado conforme a proposta do realizador. O que vemos existe apenas no ecrã, não tem uma realidade palpável como a de um cenário teatral. N’O Processo do Rei, terceiro longa-metragem do diretor português João Mário Grilo, este utiliza um procedimento semelhante ao que Orson Welles utilizou para recriar Veneza no seu filme Otelo, por motivos diversos, mas com um resultado similar. Reconstrói, através de fragmentos de lugares reais, o lugar onde a trama se desenrola.

O filme é baseado num documento histórico, de 12 páginas, que fala sobre o processo ao qual foi submetido o Rei D. Afonso VI, o Vitorioso. O processo, no filme, não é meramente uma narrativa, mas é-nos apresentado de forma imagética e presencial. Não há ficcionalização intencional, mesmo que a história seja também ela, uma narrativa sujeita à pena de quem conta (há dois registos deste processo: um contra e outro a favor). Como apresentar um processo e ao mesmo tempo não tomar partido? Como reconstruir o momento histórico sem recriar cenários? O realizador tentou reconstituir o Paço da Ribeira, espaço onde se desenrola a história, recorrendo a um recurso profundamente cinematográfico: a montagem. Correu pelo país e, de fragmentos de espaço, montou um todo convincente. Mas, como já foi dito, o espectador não tem consciência deste procedimento.

Aumont afirmou certa vez que toda a política era encenação, João Mário Grilo, através do seu filme, revela-nos vários níveis de encenação: a política, que comanda o espetáculo; a visual, que nos remete para o tempo/espaço onde a narrativa se vai desenrolar e a mise en scéne do filme, onde os atores e o cenário nos fazem ter consciência, o tempo inteiro, de que estamos a ver um espetáculo e não um fragmento do real.

O filme nos faz saltar diretamente dentro da História, não por uma elaborada criação narrativa mas pela elaborada criação visual (escudada pela fotografia de Eduardo Serra). Os ambientes fazem com que os espectadores sejam reenviados para o século XVII, e assistam a um espetáculo que ali vai se desenrolar. Ao reconstituir o Paço da Ribeira com fragmentos do real, João Mário Grilo tece um espaço cénico que nos envolve a todos, espectadores e personagens, numa atmosfera única. A mise en scène também é trabalhada ao pormenor: os atores têm a aguda consciência da representação e cumprem o duplo papel de participar de um processo histórico que foi, como tal, uma farsa urdida nos bastidores para levar D. Pedro II ao poder, e de estar num filme, onde nele são atores.

Cada plano é desenvolvido como um tableaux vivant, apesar de não o ser. Há referências explícitas, na iluminação e composição de alguns enquadramentos, ao Barroco, mas não há reproduções, nas imagens do filme, de quadros deste período. Há a lentidão do filme, que nos convida a entrar num outro tempo, e assim, o realizador, recupera o cinema primitivo: na imobilidade da câmara, na teatralidade do seu princípio e nos enquadramentos do cenário que apesar de calcado no Real, parece construído. O próprio Barroco é aqui recuperado/retratado na sua essência: um grande palco onde se desenrolava a História.

No filme a presença do Barroco não é mero pano de fundo, mas um elemento narrativo e presentificador da História. Por exemplo, o Barroco português nutriu um verdadeiro amor pela simulação, de tal forma que grandes pinturas portuguesas do período, mais do que criações originais, eram, na verdade, composições de um novo espaço cênico baseado em imagens alheias, tomadas de empréstimo de outras gravuras e quadros. No filme vemos uma reprodução do quadro o Cordeiro Místico de Josefa de Óbidos, obra emblemática da arte portuguesa. A escolha do quadro não serve apenas para dar mais credibilidade ao cenário e para nos situar na época do acontecimento histórico. Este quadro é um modelo típico do barroco português, criado a partir de outro quadro, Agnus Dei, do pintor espanhol Zurbarán. Ao mostrar o quadro de Josefa de Óbidos, João Mário Grilo revela-nos parte do seu próprio procedimento: recria, através de citações e referências, as paisagens de Chardin, os interiores de Vermeer, o requintado mundanismo dos retratos de Ticiano, a Vênus no espelho e os anões de Veláquez, toques de Rembrandt... Sem recriar os quadros recria, através de fragmentos, um tempo e um espaço onde a imagem teve importância fundamental. D. Afonso VI foi o rei, que, segundo o realizador, teve toda a sua vida comandada pelo espelho. E João Mário Grilo consegue, através da encenação proposta e da realização do filme, refletir (na dupla aceção da palavra), sobre as relações da História com o teatro, do teatro com o cinema e deste com todas as artes que o rodeiam.

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