Quem anda no trilho é trem de ferro.
Sou água que corre entre pedras - liberdade caça jeito.
Manoel de Barros

Em 2009, dois cineastas brasileiros realizam um filme cujo personagem é o que vê, é o que narra, é o que conduz a história, mas que nunca é visto. O filme, Viajo porque preciso volto porque te amo, é uma espécie de road movie que se passa no Nordeste do Brasil, dando-nos a ver o interior quase desconhecido desta parte do país, bem como apresenta uma série de personagens que são, ao mesmo tempo, parte da ficção e habitantes das cidades e vilarejos por onde passa o protagonista numa viagem que, a princípio, parece ser apenas de trabalho mas que logo se revela uma viagem simbólica e circular, que reflete uma tentativa impossível de fuga que a personagem, primeiro inconscientemente e, mais tarde, bastante consciente, se propõe realizar.

Viajo porque preciso (…) é quase um filme documental dado a pouca qualidade da captação de algumas imagens e do som, que às vezes é feito em tomadas diretas, o que dificulta ao público a perceção do que se diz, mas que ajuda a amplificar a impressão de realidade que o filme impõe. José Renato, o protagonista, é geólogo e foi enviado para analisar o percurso de um futuro canal que irá desviar as águas do único rio caudaloso da região, o que o obriga a atravessar todo o sertão nordestino. Ouvimos a sua voz a conduzir-nos cada vez mais para dentro de um espaço desconhecido e quase desabitado, ao mesmo tempo em que o acompanhamos na sua carrinha, pelas estradas, ouvindo a rádio que ele ouve e sendo testemunhas das suas reflexões.

Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, os autores, realizaram esta obra a partir de outro filme que estavam a produzir, motivados por suas próprias descobertas no e do sertão nordestino e com restos de cenas que gravaram e que acabaram por não utilizar. José Renato, o geólogo que acompanhamos durante toda a diegese, fala-nos do que vê, sem que sua fala tenha um caráter reiterativo ou de ratificação do visto; o que ele faz é dar-nos a ver, através do seu olhar, personagens e lugares que perturbam, e que enriquecem, a sua viagem. A câmara é subjetiva e nunca vemos, nem mesmo através de reflexos, a personagem única e principal. O cinema, neste caso, consegue simular a ideia de documento, o que é exibido é o que o geólogo capta no seu percurso, mas esquecemo-nos que alguém, que não está na diegese, capta a imagem da personagem e dá-nos a ver o que ele, aparentemente, vê. Conforme Emile Benveniste, ao falar do cinema em geral, “Os acontecimentos são dispostos como se estivessem se produzindo à medida que aparecem no horizonte da história. Ninguém fala aqui. Os acontecimentos parecem se narrar a eles próprios.” (1966: 241). Neste filme, sentimos de maneira mais intensa esta presença, ou melhor, esta ausência do “grande narrador” extra-diegético que constrói a narrativa. Participamos da construção da própria história, ou assim o sentimos, desde que a carrinha de José Renato aparece no ecrã e desde que ouvimos a sua voz.

O filme brasileiro, que exacerba o uso da câmara subjetiva, tornando-a a personagem principal, tem um precedente na história do cinema, um filme norte-americano dos anos 50: A Dama do Lago, de Robert Montgomery, baseado num romance do autor de novelas policiais Raymond Chandler. Os filmes não são, no entanto, comparáveis. Não só pela distância espácio-temporal que existe entre ambos, bem como pelas estruturas de produção e, finalmente, pela intenção dos autores. O filme de Montgomery experimentava num território minado pela ordem canónica de formas estritas de representação; o filme de Aïnouz e Gomes pertence ao espaço mais plástico e permissivo do cinema experimental. A história que The Lady in the lake nos conta é convencional na sua estrutura narrativa, apesar de não o ser na sua forma, por isto o incômodo causado na altura da sua exibição, e a receção fria do público que já estava acostumado a um modelo estabelecido e que tinha muita dificuldade em desfrutar perversamente, neste filme, do duplo vínculo que o cinema propõe, negando e afirmando a realidade daquilo que mostra.

No caso de Viajo porque preciso (…) o público já acompanhou a destruição e a reinvenção do cânone e também já se adaptou aos novos dispositivos digitais que permitem uma edição mais sincopada e veloz das imagens; por outro lado, o filme se apresenta a partida como não convencional, como um quase-documentário, o que permite mais facilmente a adesão à sua forma e ao uso que faz da câmara subjetiva, pois subsumimos que no cinema documental o autor deve estar presente o mínimo possível, deixando que a história, que os eventos se narrem a si próprios. Por outro lado, enquanto no filme norte-americano assistimos a uma história fechada, teleológica e previsível, no filme brasileiro assistimos a um percurso, que se desenrola diante dos nossos olhos, que nos mostra um ambiente em que a maioria de nós não se revê, mas consegue que o público se reveja naquilo em que o filme se transforma: uma metáfora do vazio, dos descaminhos, das histórias de amor com finais infelizes, da errância humana sobre a terra e, internamente, dentro de si mesma, à procura de respostas e daquilo que é o fito último de cada um: ir ao encontro de uma felicidade possível.

Viajo porque preciso (…) aproxima-se mais da proposta de Marguerite Duras que tentou, com Indian Song, criar um filme atemporal, que representasse não apenas aquela história de amor, mas todos os triângulos amorosos do mundo, todas as situações de angústia provocadas pela manutenção de uma relação que se sabe, à partida, condenada. O processo de identificação nestes filmes ocorre por causa dos princípios que eles enunciam, e não pelas histórias que contam. Neste caso, o corpo da personagem, ou das personagens, pode estar ausente porque é preenchido pelo corpo do espectador que sente como e através do filme.

Assim temos que a relação de identificação com o cinema não se dá apenas através da (falsa) especularidade dos corpos, mas também ocorre quando um filme apela a sentimentos arquetípicos, propondo ao espectador um lugar ativo na história. O que só ocorre, verdadeiramente, no cinema que podemos chamar de “divergente”, de não canónico. Mas este tipo de cinema ainda atinge um público pequeno diante dos muitos milhões que consomem o modelo norte-americano e que, como tal, continuam a desfrutar do gozo perverso do duplo vínculo, do saber-se não representado mas continuar acreditando que se vê no ecrã, replicando comportamentos e modelos que ocultam uma ideologia específica e que suscita, paulatinamente, a normatização dos comportamentos e cria uma sensação real, embora distorcida, de pertença.

Conclusão

Régis Debray, na sua obra sobre a vida e morte da imagem, afirma que “é uma banalidade verificar que a arte nasce funerária, e renasce apenas morre, sob o aguilhão da morte.” (1994: 22). A arte nasce da morte porque a humanidade desejava imortalizar-se, ou preservar a imagem dos seus entes queridos, como forma de manter, entre eles, a sua presença. No entanto, as imagens adquiriram, ao longo dos séculos, novos significados e novas funções como, por exemplo, a função de operar como espelho duma civilização específica, refletindo e difundindo a imagem desta civilização, que se encarregou de espalhá-la pelo resto do mundo recém-conquistado.

A imagem cinematográfica buscou, ao longo de sua história, principalmente daquela vinculada ao modo de representação institucional, não ferir as leis da perceção nem ir de encontro às tendências naturais que constituem a nossa subjetividade. Por isto o filme de Robert Montgomery, The Lady in the lake, foi um fracasso de bilheteira, porque feria claramente o princípio da identificação ao retirar de cena o corpo do detetive. Só no cinema divergente é que é possível encontrar-se formas disruptivas de representação que não repliquem o cânone e que consigam, efetivamente, refletir e provocar a reflexão sobre o que se vê, sobre o que é visto e sobre quem se vê.

A imagem do cinema é um constructo artístico, contingente, social ou ideológico. Vemos no ecrã o que o autor da imagem quer mostrar. Mas sempre é possível ver mais: os sobejos do visível, recortados pelo enquadramento, dizem-nos muito das imagens que se mostram, sobretudo naquilo que elas querem ocultar. Indian Song e Viajo porque preciso volto porque te amo, partindo de diferentes contextos sócio-estético-culturais, trabalham sobre o princípio comum: o de tentar revelar o que o enquadramento oculta, o que não se vê, os restos.

O cinema ocupa, muitas vezes, o lugar de “discurso da verdade” – porque é sustentado por imagens que são consideradas um espelho do real. O cinema, que nunca foi um mero reprodutor da realidade, sempre usou a realidade como discurso, um discurso que se apresenta como um espelho aperfeiçoado que, não só reflete, mas reelabora as imagens do mundo, tornando-o mais compreensível e ordenado segundo padrões ideais. A única forma de combater este discurso do mundo visível é produzir novos discursos que irrompam de dentro da lógica do dispositivo e que provoquem, mais que reflexos, autênticas reflexões.

Referências Bibliográficas

Arnheim, Rudolf (1998), Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo, Pioneira.
Aumont, Jacques e Marie, Michel (2003), Dicionário teórico e crítico de cinema, Campinas, Papirus.
Baudry, Jean-Louis (1974-1975), “Ideological effects of the basic cinematographic apparatus” in Film Quarterly, vol. 28, nº 2.
Benveniste, Émile (1966), Problèmes de linguistique générale, vol. I. Paris, Gallimard.
Canevacci, Massimo, (1990), Antropologia da Comunicação Visual, São Paulo, Brasiliense.
Carrière, Jean-Claude. (1995), A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
Comolli, Jean-Louis (2007), Ver y Poder - La inocencia perdida: cine, televisión, ficción, documental, Buenos Aires, Aurelia Rivera.
Debray, Régis, (1994), Vida e Morte da Imagem. Petrópolis, Editora Vozes.
Tavares, Mirian Nogueira, (2008), “Cinema digital: novos suportes, mesmas histórias”, ARS (São Paulo), São Paulo, v. 6, n. 12, Dec. 2008.
Xavier, Ismail (1996), O Cinema no século, Rio de Janeiro, Imago.