Para quem acha que o pior do futebol brasileiro foi a derrota inesquecível do 7x1, você está redondamente enganado. O pior do futebol são as crenças passadas de geração em geração que como estalactites se formam de pequenos episódios, imperceptíveis muitas vezes, mas que, acumulados, formam essa estranha estrutura verticalizada alheia ao restante do ambiente numa caverna que é o futebol no mundo dos esportes.

Seja a corrupção entre os grandes, seja um xingamento racista, muitos são os temas que poderíamos discutir horas a fio e que têm estampado as manchetes dos noticiários de esporte do Brasil e do mundo. Porém, muitas vezes, as notícias fragmentadas e espaçadas no tempo não geram uma reflexão alinhavada e que, portanto, poderia cerzir os grandes rombos na colcha de retalhos que é o esporte aqui.

Desde menina, meus domingos eram sempre marcados por uma rotina futebolística que mal eu sabia culminaria na minha paixão pelo esporte. Talvez por meu pai não ter tido filhos homens e por eu gostar de estar ao seu lado, afinal esse era o único dia que ele ficava em casa, eu cresci assistindo Fórmula 1 pela manhã e o futebol à tarde, seguido de infinitas discussões dos comentaristas da rodada da televisão aberta. Logo adotei um time e tentava mostrar minha paixão em três cores junto aos meninos, mas era tudo muito fechado. Restava-me comprar as revistas que tinham os ditos “colírios” com os jogadores mais lindos e ser uma tiete, o que, certamente, não me caia bem. Afinal, o que eu gostava mesmo era o agón da coisa, ou seja, gosto do embate do jogo e das coisas incríveis que só acontecem em uma partida de futebol.

Na escola, a prática do futebol era mesmo dos meninos e meninas jogando futebol eram “mal” vistas. Não havia time das meninas, não passava campeonato feminino de futebol na televisão e não se falava nessa ausência. “Lugar de mulher é no fogão!”, para muitos uma verdade. Nos anos 2000 o futebol feminino ganhou mais destaque, mas nunca foi igual ao masculino, apesar de termos Marta detentora de tantos recordes e de sermos o país do futebol. E eu nunca, de fato, havia parado para pensar na ausência do futebol feminino no nosso cotidiano até que uma “gringa”, recém chegada ao Brasil, que tinha por objetivo continuar seus treinos de futebol em solo carioca, me disse que era uma grande decepção que no país do futebol as mulheres não jogassem futebol. Ela esperava, como creio que muitos estrangeiros guiados pela máxima “Brasil terra do samba e do futebol”, que o futebol fosse jogado em toda esquina e por todos, homens e mulheres. E não era e nunca foi assim, infelizmente.

A decepção da “gringa” me contaminou e apesar de haver campeonatos estaduais e até um “Brasileirão” de futebol feminino, não se ouve falar nada disso na mídia. É importante frisar que nem mesmo na televisão paga nos pacotes tradicionais é oferecido o futebol feminino. Alguns outros esportes ainda têm algum prestígio, como o vôlei, mas como tudo nessa vida, só transmitem o que dá retorno, como se ninguém se interessasse por outra coisa. A menos que você tome a iniciativa e busque a informação, você achará que o futebol feminino surge num passe de mágica apenas nos Jogos Olímpicos e na Copa do Mundo. Assim, o feminino no futebol se restringe aos lugares sexistas de sempre: mulher não entende nada das regras e não sabe nem que lado a equipe tem que fazer gol, só torce para o Brasil na Copa do Mundo e não tem time e não vai ao estádio porque lá não é lugar de mulher “direita”.

Entretanto, ninguém precisa ser gênio para saber que a realidade, felizmente, vem mudando. A passos de tartaruga, mas vem mudando. Muitas mulheres vão ao estádio, se uniformizam e discutem impedimento, pênaltis e polêmicas no dia seguinte na hora do café. E foi justamente essa mudança na forma de como a mulher e o futebol se relacionam hoje em dia que houve uma grande discussão nas redes sociais com o lançamento do uniforme novo do Clube Atlético Mineiro no dia 15/02.

Por uma infelicidade, para não dizer machismo logo de cara, o clube apresentou seu uniforme novo com um desfile e, em determinado momento, modelos entraram apenas com as camisetas e uma espécie de tanga. Além disso, houve momentos em que as modelos desfilavam de biquíni com a bandeira do clube, o que gerou revolta entre as próprias atleticanas que, em carta aberta, repudiaram tal atitude do clube. Se o evento é para divulgar o novo uniforme, qual o sentido de colocar modelos de biquíni envoltas na bandeira do clube? Desde quando as mulheres usam apenas a camisa do clube com uma tanga? Para piorar ainda mais a situação machista que já era extrema e escancarada para toda a mídia presente, a empresa que confecciona os uniformes estampou na etiqueta de lavagem de alguns de seus produtos a seguinte frase: “Give it to your wife” (Dê para sua esposa). Tudo isso pode parecer pouco para tanta repercussão, mas uma hora o copo enche e transborda.

Dentro do campo, ainda temo muito para evoluir. Embora tenhamos mulheres que trabalhem na arbitragem, os próprios jogadores não levam as profissionais a sério. Na semana anterior ao polêmico desfile do Galo, um jogador foi expulso depois de dizer a uma bandeirinha que futebol é para homem, não para mulher. Além disso, sugeriu que ela fosse para a cozinha lavar louça. Ou seja, dentro e fora do campo o predomínio machista é implacável. É a Maria-chuteira que quer dar o golpe, a bandeirinha incompetente e assim vai. E mulher comentarista? Só se for em sonho. Alguns programas esportivos ainda tentam colocar algumas mulheres, mas elas nunca estão comandando debates técnicos e geralmente são apresentadoras bonitas que reproduzem algo que um editor-chefe previamente estabeleceu. Sem falar na ditadura dos artigos femininos do seu clube do coração. Com material horrível de usar, sem tamanhos apropriados para todos os tipos de corpos e nem o corte adequado, os uniformes de futebol para mulheres torcerem para seus times são um horror no provador. E o preço? Exorbitante. É uma ditadura de padrões por todos os lados.

O desfile do clube mineiro não foi o primeiro e nem o único a ter as mulheres em uma condição sexista de apresentação, mas as atleticanas não se calaram e apontaram o dedo para mais um lugar – infelizmente – comum que colocam a mulher no futebol: como um mero objeto estético para vender o uniforme. Nada vai mudar da noite para o dia, mas que o próximo que for planejar o lançamento de um uniforme vai pensar duas ou mais vezes antes de colocar mulheres de biquíni, ah, isso vai!