O que é o Brasil? Uma simples pergunta que muitos já tentaram responder pelo viés histórico, antropológico, linguístico, econômico, cultural e também artístico. Muitas vezes ao percorrer estradas e o céu do meu país eu já me fiz essa pergunta e, instigada por ela e outros tantos motivos, maturei a ideia de me candidatar ao programa de voluntariado do PNUD nos Primeiros Jogos Mundiais dos Povos Indígenas até o último dia de inscrição, quando enfim tomei coragem e, com um texto recheado de sonhos, finalmente me inscrevi na esperança de ver o que era o Brasil pelo viés dos povos originários. Ali foi nascendo o espírito desbravador de Mário de Andrade que afloraria em mim ao pisar em Palmas, Tocantins, sede dos Primeiros Jogos Mundiais dos Povos Indígenas.

Na tentativa de resgatar os laços de ancestralidade e unir os diversos povos originários brasileiros, dois irmãos do povo Terena tiveram um sonho: unir os povos indígenas por meio de jogos. Assim nasceram os Jogos dos Povos Indígenas do Brasil na década de 90. Mas o sonho dos irmãos Terena foi além: reunir os povos indígenas do mundo todo para celebrar as suas próprias culturas, compartilhar experiências, discutir questões pelas quais todos passam ou já passaram no mundo moderno e, é claro, participar de atividades esportivas.

Das Américas vieram povos indígenas dos seguintes países: Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Estados Unidos, Guatemala, Guiana Francesa, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai. Do continente africano, os povos representantes vieram da Etiópia e Gambia. Do continente europeu o único representante foi a Finlândia. Da Ásia houve representantes das Filipinas, Rússia e Mongólia. Por fim, a Nova Zelândia da Oceania. Já dos povos nacionais, a grande maioria veio do estado do Mato Grosso (Bororo Boe, Rikbaktsa, Kayapó Mebengokre (também do Pará), Kamayurá, Karajá (também dos estados de Goiânia, Pará e Tocantins), Kuikuro, Kura Bakairi, Mamaindê Nhambikwara e Paresi (também de Rondônia), Manoki, Tapirapé (também do Tocantins), Terena (também do Mato Grosso do Sul e São Paulo) e Xavante. Os Asurini, os Kyikatejê/Parakatejê – povo Gavião e os Waiwai (também do Amazonas e Roraima) vieram do Pará. O povo Matis veio do estado do Amazonas, o povo Pataxó do sul da Bahia e norte de Minas Gerais, enquanto os Canela Rãmkokamekra são os únicos representantes do estado do Maranhão. Com indígenas espalhados pelos estados de São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, participou dos jogos também o povo Kaingang. Os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul também marcaram presença ao lado dos povos do estado-sede: Javaé Itya Mahãdu e Xerente.

Com o lema “O importante não é ganhar, e sim celebrar”, as modalidades esportivas se dividiram em jogos de integração, demonstração e ocidental. Os jogos de integração são esportes tradicionais praticados pela maioria dos povos indígenas brasileiros, mas que contaram com a participação de povos de outros países: arremesso de lança, arco e flecha, cabo de força, canoagem, corrida de 100 m, corrida de fundo, corrida com tora e natação. Os jogos de demonstração, por sua vez, são praticados por um povo em particular e o objetivo dos mesmos é resgatar as práticas tradicionais da etnia em questão e apresenta-la a outros povos. E, como não poderia faltar no Brasil, os jogos ocidentais foram o futebol feminino e masculino.

Todas as atividades esportivas aconteceram na Arena Green localizada na Vila dos Jogos, no estádio Nilton Santos ao lado da Vila e à beira do Ribeirão Taquarussu, próximo do local do evento. Lá também se deu a mostra Cunhã Porã, que na língua guarani quer dizer mulher bonita. Não foi um desfile propriamente dito, mas pôde-se ver as diversas belezas da mulher indígena de vários povos do mundo inteiro com seus adereços e roupas típicas. A Vila dos Jogos era composta também pela Oca da Sabedoria, onde as atividades culturais e debates aconteceram e pela Oca Digital, onde houve cursos de capacitação e acesso à Internet. Em dois pavilhões à parte, mas ainda dentro da Vila, o Sebrae hospedou os estandes de artesanato de diversos povos e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) promoveu a II Feira Nacional da Agricultura Nacional Indígena (FENATI).

Foi nesse cenário e com esses integrantes que vivi uma das experiências culturais mais ricas da minha vida. E tudo começou com os primeiros indígenas que conheci no treinamento para voluntariado do PNUD e com a aprendizagem sobre o universo indígena nacional, ainda que explorado muito superficialmente nesse mesmo momento. Senti como acredito que Mário de Andrade se sentiu quando do primeiro contato com os povos originários: uma alegria no batimento acelerado do coração misturada com curiosidade e respeito por tudo aquilo que ia passando pelos meus olhos durante a apresentação dos povos nacionais feita pela filha de um dos irmãos Terena. A partir desse momento, quando situações que eu jamais esperaria viver aconteciam, eu me perguntava internamente: O que Mário de Andrade diria, como registraria e como entenderia tudo isso? Então, desnudei-me de tudo o que eu era e de todos os preconceitos e estereótipos que eu poderia ter e deixei-me levar pelo que meus sentidos diziam. Foi assim que descobri o mundo indígena.

E muitas foram essas situações inimagináveis que, ao longo de uma série de textos, vou compartilhar: acompanhar indígenas do alto Xingu no mesmo refeitório que o povo Maori; comer junto com todos eles e, enquanto se espera para ser servido, presenciar logo na fila um povo dançar e soar seus chocalhos; ver indígenas que mantém o costume de não cobrir os seios; tirar uma selfie com indígenas com cocares multicoloridos de corpos pintados que também pediriam para registrar esse momento; presenciar uma cacique canadense trocar colares típicos com a esposa do cacique dos Canela e ser a intérprete de tamanha troca. O que menciono aqui são apenas alguns exemplos do que vivi nos meus dias como voluntária, mas muitos outros fatos e aprendizados ainda estão por vir e, até lá, quem sabe, não conseguirei pelo menos delinear o que é o Brasil indígena que Mário tanto honrou?