Ao contrário de Newton e de Schopenhauer, o seu antepassado não acreditava num tempo uniforme e absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Esta trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades.
Jorge Luís Borges

No mundo ocidental, a arte começa como techné – capacidade técnica. Os gregos falavam sobre a beleza e sobre a técnica, não sobre aquilo que hoje chamamos de Arte. Criaram manuais, cânones e a partir deles traçamos um percurso até ao momento em que a techné passou a ser chamada de ars pelos romanos. ARS/ Arte – palavra latina que significa articulação. Arte era vista como a capacidade de articular ideias com suportes e materiais diversos bem como a capacidade de resolver tecnicamente um problema que a matéria propunha. A necessidade de criar, dentro do vasto campo das “artes” um campo específico para as Belas Artes deu-se, precisamente, porque àquilo a que convencionou-se denominar Arte, pertence a um universo mais vasto e, como tal, os artistas queriam encontrar a sua especificidade e destacá-la.

As artes implicavam um conjunto de regras e artista era aquele que cumpria e/ou aperfeiçoava as regras do seu metier. No Renascimento o artista assume o papel de criador, não só artífice, mas aquele que concebe a obra, antes mesma dela estar realizada. A base da revolução renascentista descende diretamente das ciências: matemática, física e geometria, que se tornam parâmetros para a criação artística. O artista não é apenas aquele que executa, mas é, sobretudo, aquele que pensa. Ao mesmo tempo a ciência moderna, que dá os seus primeiros passos, olha para o mundo à sua volta e percebe que é preciso mensurá-lo, organizá-lo, instrumentaliza-lo para poder compreendê-lo. Bacon, Leibniz e tantos outros que, como Galileu, defenderam que a ciência deveria olhar para as coisas e não apenas teorizar sobre elas ou aceitar verdades imutáveis provindas do mundo da fé. A Revolução Industrial e a Revolução Francesa mudam a arte e cultura apostando na distribuição do saber e na valorização do cidadão. O século XIX desponta com novos suportes tecnológicos: a fotografia e o cinema. O fim do século XIX é marcado pelo aparecimento da Arte Nova, que assenta numa base racional e arquitetónica, ao mesmo tempo em que explora as formas da natureza e a organicidade do mundo e dos objetos do mundo. A arquitetura dos engenheiros, no séc. XIX, explora novos materiais e redesenha as cidades que se tornam, muitas delas, metrópoles. Surge um novo sujeito com novas necessidades num mundo também novo. Os movimentos de vanguarda aparecem como uma resposta às angústias da humanidade diante dos novos suportes, das novas leis da Física, do novo mundo que se (re) configurava diante de todos. Vários foram os movimentos de vanguarda. Alguns deles eram profundamente antitéticos, mas todos se debruçaram sobre questões fundamentais: qual seria a nova conceção do Homem e da História? Qual seria a melhor maneira de criar num período onde o desenvolvimento tecnológico atingira proporções até então nunca imaginadas? Surge o fascínio pela máquina, que se tornou definitivamente uma intermediária entre o homem e o mundo.

As vanguardas foram fundamentais porque ajudaram as pessoas a perceberam as transformações que as rodeavam e que alteravam profundamente a sua percepção do espaço e do tempo. A arte retornava para dentro de si mesma, num movimento centrípeto, que negava a necessidade intrínseca de reproduzir o mundo. Os artistas do início do séc. XX não temiam o novo, pelo contrário, queriam conhecê-lo, explorá-lo. E a novidade chegava em forma de novas tecnologias, de novos usos para velhas ideias. Foi pelas mãos das vanguardas que o cinema passou a ser chamado de Sétima Arte, enquanto para o resto do mundo era apenas uma forma de entretenimento a baixo custo. Os artistas apropriaram-se ainda da fotografia, que deixou de ser uma arma de registo do mundo para se converter numa nova forma de criação, num suporte para possíveis e improváveis experimentações.

O uso das tecnologias, pelas vanguardas, era sempre disruptivo. Os suportes tecnológicos perdiam as suas funções programadas e adquiriam novas configurações. A relação entre a arte e a tecnologia não é nova. Vimos que, no mundo ocidental, arte começa como techné e que o momento de retomada do racionalismo – o Renascimento, marcado pela ascensão do humanismo, promove um casamento indissolúvel entre arte e ciência, entre pensamento artístico e lógica matemática. Mais tarde, a Teoria da Relatividade e os novos passos dados pela Física vão influenciar as teorias dos pintores cubistas bem como a Psicanálise vai estar na raiz do Surrealismo. Os Futuristas foram condenados pela sua “modernolatría” e por defenderem que a guerra, com seus campos de batalha e as novas armas criadas pelos homens para a destruição massiva, eram tão ou mais belos que a toda a arte produzida pelos clássicos.

O fascínio exercido pelas máquinas atinge, de uma maneira ou de outra, as vanguardas, que viam nas novas tecnologias não apenas um fator de desumanização, mas uma possibilidade de integração na nova realidade. Marinetti afirmava que “a roaring motor car is more beautiful than the Victoria of Samothrace”. Gino Severini, um dos maiores teóricos produzidos pelo Futurismo, asseverava entusiasticamente as possibilidades estéticas da ciência, chegando mesmo a acreditar que “the process of creating a machine did not differ in essence from the process of creating a work of art”, desta maneira torna-se fácil compreender a relação das vanguardas com o os novos suportes tecnológicos. O Dadaísmo, conforme Benjamin, foi um movimento que ajudou a alterar a percepção do mundo, e da arte, através do choque: as suas obras provocavam os espectadores, desestabilizando-os e desenraizando as certezas que já lhes eram intrínsecas. O espectador saía do lugar confortável da contemplação e era instado a interagir com os objetos, a frui-los de um novo modo. Como no cinema, as imagens eram projetadas numa velocidade intensa que alterava a relação com o tempo e com o espaço.

Para os Futuristas, e Dadaístas, como para outros movimentos das vanguardas em geral (Construtivismo, Surrealismo) os novos suportes tecnológicos eram perfeitos para a nova arte que eles propunham. As máquinas, para os Futurista, e sobretudo a máquina do cinema, descortinavam possibilidades infinitas de experimentação. O Manifesto do Cinema Futurista, publicado originalmente em 1916, proclamava que o cinema “born only a few years ago, (...), lacking a past and free from traditions”, poderia tornar-se o instrumento ideal para a nova arte, dentre outras coisas pela sua “pollyexpressiveness towards which all the most modern artistic researches are moving.”

Os movimentos de Vanguardas deixaram marcas profundas na arte e na cultura do séc. XX bem como promoveram uma verdadeira revolução nas relações entre as Artes e as Ciências (com seus aparatos tecnológicos). A segunda metade do séc. XX é marcada pela Grande Guerra que desestabiliza as relações da Arte com o seu em torno bem como torna mais visível os novos modos de produção e difusão da Cultura e da Arte, bem como da Ciência e, sobretudo, da Comunicação. Teorias como a Cibernética são criadas na tentativa de dar algumas respostas a complexificação das relações entre as pessoas e o universo que as rodeia. A Teoria Cibernética baseia-se num princípio: dar a conhecer o todo através das suas relações. A palavra cibernética deriva do verbo grego kybernein(pilotar), ou seja, a técnica de conduzir bem um navio. Platão acrescentou ainda outro sentido: não só reger o rumo dos barcos mas de toda a sociedade – governar. Em 1886 o físico inglês James Clerk Maxwell usa o termo para se referir aos artefactos de controlo das máquinas e nos anos 40 do Séc. XX, Norbert Wiener apropria-se do termo para designar: “o domínio todo da Teoria da Comunicação e do controle seja na máquina ou no animal.”

Wiener usa o termo para consagrar o trabalho de Maxwell, o controle das máquinas é fundamental e assegura que a esta atividade reproduz, noutra escala, a técnica dos pilotos e a arte de governar. É necessário percebermos que, quando se trata do universo da tecnologia, tudo está interligado. A dita Sociedade da Informação não começou com o aparecimento dos computadores e das redes, mas muito antes, no despertar da Ciência Moderna. Saber é, antes de mais nada, controlar o conhecimento, produzi-lo e difundi-lo. Nos sécs. XVII e XVIII foi dado à Matemática um papel de destaque – era vista como um modelo de raciocínio e de ação útil. Só contava, para a ciência, o que fosse enumerável e mensurável. A matemática fornecia um modelo democrático e partilhável de conhecimento, já que os números são, a partida, universais, ao contrário das línguas.

No séc. XVII Leibniz (1648-1716) afirmou que o conhecimento poderia se manifestar no interior de uma máquina. Elabora então uma aritmética binária com o intento de simplificar e comprimir o conhecimento, tornando-o acessível e descodificável. O projeto de Leibniz, e de outros cientistas como Francis Bacon, demonstra uma nova atitude diante do tempo e do espaço. A velocidade começa a fazer parte da lógica da vida quotidiana. Leibniz propunha a criação de uma língua ecumênica que pudesse permitir a comunicação entre todos os povos. Assim sendo, a necessidade de compreender o sistema como um todo, o mundo como uma aldeia, pode ser bem representado pelo problema da Caixa Preta: só conhecendo o todo, é possível perceber o seu funcionamento e as causas e consequências das ligações efetuadas. A Arte entra nesta lógica, deixando de fazer parte de um mundo “fora do mundo” e interliga-se com as novas tecnologias e a nova filosofia que comandava a era da Comunicação. Se a Arte tradicional rejeitou, a partida, o cinema e a fotografia, as Vanguardas Históricas, como vimos, apropriaram-se destes novos media no seu afã de encontrar maneiras de rebelar-se contra o modelo de Arte pré-estabelecido, académico e desconectado do seu próprio tempo. Depois do final da II Grande Guerra, o mundo entra numa nova era – mais maquínica e desesperançada. As artes sofrem modificações e passamos a falar de Arte Contemporânea, porque a Utopia da Arte Moderna já não era contemplada pelos artistas que surgiram após o conflito mundial.

Alguns dos movimentos artísticos interagem, diretamente, com as máquinas, seja no intuito de usá-las como meio de difusão seja para inverter a sua lógica funcional e questionar a relação homem/máquina. Nesta época algumas ideias de Duchamp são retomadas pois, para um dos pais do Dadaísmo, a arte seria um gesto resultante de um pensar, os artistas não são fazedores de arte, mas criadores-operadores de ideias. Durante os anos 60 as relações entre artes e tecnologias vão se intensificar e em 1965, artistas como Robert Rauschenberg, Billy Klüver juntam-se aos especialistas do Bell Laboratories (Murray Hills, New Jersey, U.S.) num projeto interdisciplinar que reuniu teatro, dança, artes visuais e novas tecnologias.

Em 1967 é criado o E.A.T. – Experiments in Arts and Technology que promove o Festival 9 Evenings: Theatre and Engineering, uma série de performances artísitcas realizadas por artistas e engenheiros que trabalharam em conjunto. Ainda nos anos 60 e no início dos anos 70 várias são as experiências que irão promover o encontro entre arte e tecnologia, criando, dentro da arte, uma nova categoria de objetos que passam a fazer parte do que habitualmente é designado como “Arte Digital.”

Em 1992, Anne Cauquelin termina seu livro Arte Contemporânea – Uma introdução, apresentando ao leitor uma nova forma possível de arte, a Arte Tecnológica. Hoje, após novas propostas teóricas e evolução do próprio meio, seria possível falarmos em termos como Arte Telemática, Pixel art, Digital art, Net art, Wiki art etc.

Se a arte deixou de ser techné para converter-se em Belas Artes, afastando-se das questões técnicas primordiais, geradoras dos cânones da arte ocidental, contemporaneamente a ideia de um retorno a techné se impõe: por um lado porque as relações construídas ao longo dos séculos entre artes/ciências e tecnologia foram se tornando cada vez mais frutíferas e por outro porque a própria arte, depois do advento das Vanguardas, sofreu um processo de transformação profunda que pôs em causa os princípios aventados pela História da Arte e as suas definições, bem como complexificou a relação do artista com os materiais e com as novas realidades envolventes.